PF investiga empresa de saneamento no litoral do PR

Análise técnica — o que aconteceu e por que importa

A investigação sobre possível contaminação na Baía de Paranaguá acende um alerta estratégico para todo o setor de saneamento. Autoridades ambientais e policiais apuram se materiais plásticos conhecidos como biomídias — suportes do processo biológico em reatores MBBR — teriam alcançado o estuário, inclusive áreas de manguezal. Embora a tecnologia MBBR seja consolidada por sua eficiência e compacidade, a perda de biomídias para o meio externo configura falha crítica de contenção e de gestão operacional. Desse modo, discutir riscos, marcos legais e práticas de controle torna-se essencial para companhias de saneamento que operam em áreas costeiras e estuarinas.

O que são biomídias (MBBR) e por que podem vazar

No processo MBBR (Moving Bed Biofilm Reactor), biomídias de PEAD com alta área específica (tipicamente de dezenas a centenas de m²/m³ por peça) circulam em tanques aerados servindo de suporte ao biofilme. Assim, a remoção de DBO e, quando projetado, a nitrificação/denitrificação tornam-se mais estáveis mesmo sob picos de carga — uma vantagem frequente para operações de saneamento. Entretanto, eventuais transbordamentos, by-passes, falhas de telas de retenção, ruptura mecânica de grelhas, manutenção inadequada de peneiras finas e eventos de chuva extrema podem arrastar biomídias para canais de saída, valas de drenagem e corpos hídricos receptores. Portanto, além do desenho adequado, é indispensável o “envelope” de contenção redundante e protocolos de contingência.

Marcos legais aplicáveis

No Brasil, o enquadramento e a qualidade de corpos d’água e os padrões de lançamento de efluentes são disciplinados pelas Resoluções CONAMA 357/2005 e 430/2011. Assim, o operador de saneamento deve garantir, de maneira contínua, que qualquer efluente lançado atenda padrões físico-químicos e microbiológicos, e que não ocorra arraste de sólidos não previstos — como biomídias — para o corpo receptor. Ademais, condutas que resultem em poluição podem ensejar responsabilização penal, administrativa e civil nos termos da Lei 9.605/1998 (Crimes Ambientais). Em paralelo, o Novo Marco do saneamento (Lei 14.026/2020) reforça a necessidade de prestação adequada, eficiência e universalização, estimulando governança e compliance ambientais mais robustos.

Riscos ambientais e sanitários específicos

Quando biomídias alcançam ambientes costeiros, três efeitos se destacam. Primeiro, atuam como vetores físicos: por serem pequenos, podem ser ingeridos por peixes, crustáceos e aves, causando obstruções e danos. Segundo, funcionam como substratos para biofilmes e, assim, podem transportar microrganismos aderidos — mesmo que a biomídia tenha saído de um processo destinado a remover carga orgânica. Terceiro, contribuem para a pressão de microplásticos: abrasão mecânica em ambientes de alta energia (ondas, marés) fragmenta as peças, aumentando a exposição de biota e a dispersão no estuário. Consequentemente, episódios desse tipo geram impacto ambiental, risco reputacional e passivo regulatório para a empresa de saneamento, além de mobilizar ações de fiscalização e coleta.

Prevenção estruturante para companhias de saneamento (checklist prático)

Para que situações semelhantes não ocorram, recomenda-se um pacote integrado de engenharia, operação e governança, com ênfase em saneamento costeiro:

  • Engenharia de contenção (barreiras redundantes) — Dupla contenção de biomídias: peneira interna (malha < 6 mm) + tela externa de segurança no vertedouro final. Cestos de retenção em pontos de overflow e sifões anti-arraste em caixas de transição. Monitoração de integridade com sensores de diferencial de pressão (ΔP) nas telas. Critérios de projeto específicos para eventos de cheias (Qrecorrência ≥ 10 anos).
  • Operação e manutenção (O&M) — Rotina de inspeção diária de telas e grelhas, plano de reposição preventiva, baixa controlada de nível antes de chuvas severas, protocolo de isolamento (“stop-log”) e ensaios periódicos de “fuga de mídia”.
  • Telemetria e automação — Alarmes em tempo real para alta de nível, queda de ar/aeração e aumento de ΔP; intertravamentos que impeçam operação sem proteção de telas; histórico automatizado de eventos para auditorias.
  • Resposta a incidentes (PAE) — Kit de resposta costeira: barreiras de contenção, redes, barcaças de coleta e EPI. Varredura imediata a jusante da ETE e comunicação transparente com autoridades.
  • Monitoramento ambiental — Rotas de amostragem para enterococos, SST, óleos e graxas, resíduos flutuantes e contagem de biomídias. Auditoria trimestral independente de conformidade CONAMA para operações de saneamento em áreas sensíveis.
  • Governança e cultura — Inserção de “fuga de biomídias” como evento crítico na matriz de riscos do saneamento. Treinamentos e certificações ISO 14001 com foco em controle de sólidos não previstos.

Exemplos similares e lições úteis

Casos de biomídias em praias do litoral paranaense já foram documentados por grupos de pesquisa em 2023 e 2024, reforçando a necessidade de barreiras eficazes e vigilância operacional no saneamento costeiro. Além disso, surtos entéricos associados a ligações clandestinas e extravasamentos em outros municípios — como o ocorrido no Guarujá (SP) em 2025 — mostram que a percepção social e a pressão regulatória aumentam rapidamente quando água do mar e turismo estão em jogo. Em Paranaguá, intensificaram-se fiscalizações e multas contra a concessionária, evidenciando o alto custo de não conformidade para a operação de saneamento.

Indicadores recomendados para gestão contínua

  • Taxa de fuga de biomídias (unid./milhão m³ tratados) — meta: zero;
  • Disponibilidade das telas de retenção (%) e ΔP médio (mH₂O);
  • Eventos de overflow por 10⁶ m³ e tempo médio de resposta (minutos);
  • Conformidade CONAMA 430 (%) e balneabilidade (enterococos/100 mL) a jusante;
  • Incidência de reclamações ambientais e tíquete de fiscalização encerrado.

Conclusão

Operar saneamento em ambientes costeiros requer disciplina adicional: contenção física redundante, cultura de prevenção e prontidão para emergências. O caminho de menor risco combina engenharia robusta, O&M diligente, transparência e ciência cidadã. Assim, incidentes com biomídias deixam de ser uma surpresa e passam a ser uma variável controlada — protegendo o estuário, a reputação da operação de saneamento e a confiança pública.

Fontes