A régua de cobrança perfeita no saneamento

A construção de uma régua de cobrança eficiente sempre foi um dos maiores desafios das companhias de saneamento. Embora o tema pareça estritamente operacional, ele influencia diretamente a sustentabilidade financeira do setor e, consequentemente, a capacidade de investimento em água tratada, esgotamento sanitário e novas tecnologias. Assim, por mais que o saneamento dependa de obras, equipes e ativos físicos, ele depende também de um ciclo de faturamento e recuperação de receitas capaz de transformar consumo em caixa com eficiência e previsibilidade.

Contudo, desenvolver a régua de cobrança perfeita não é apenas padronizar mensagens e prazos. Na verdade, envolve compreender profundamente o comportamento do usuário, o nível de risco de cada segmento, a regulação aplicável, as limitações operacionais e, sobretudo, a necessidade de construir um relacionamento inteligente com o cliente. Portanto, a régua ideal no saneamento é, antes de tudo, estratégica.

1. A inadimplência como risco estrutural no saneamento

O primeiro passo para desenhar a régua de cobrança perfeita é entender por que o saneamento convive estruturalmente com inadimplência mais alta do que outros setores. Entre as principais causas, destacam-se:

  • Serviço essencial, o que limita ações mais rígidas em muitos perfis de usuários.
  • Sensibilidade social, especialmente em regiões de vulnerabilidade.
  • Elevado número de clientes de baixa renda, fortemente afetados por sazonalidade financeira.
  • Dificuldade histórica de atualização cadastral, o que compromete endereços, contatos e notificações.
  • Tarifas progressivas, que, embora promovam justiça tarifária, podem provocar aumentos inesperados após consumo atípico.

Além disso, o saneamento depende fortemente de sistemas legados complexos, que, ao longo dos anos, dificultaram uma visão única do cliente. Portanto, a régua de cobrança precisa evoluir junto com a maturidade digital das empresas de saneamento.

Companhias como Sabesp, Sanepar, Sulgipe, Saae Sorocaba, Caesb e Embasa já relatam que a inadimplência pode variar de 6% a 35%, dependendo da localidade, da faixa tarifária e da forma de atendimento. Assim, uma régua de cobrança moderna precisa ser adaptável às características do território e ao contexto regulatório de cada sistema de saneamento.

2. Por que a régua de cobrança no saneamento deve ser multicanal

Uma das transformações mais relevantes dos últimos anos no saneamento é a migração para um modelo de comunicação multicanal, extremamente essencial para a régua de cobrança. Isso ocorre porque clientes diferentes respondem a estímulos diferentes e possuem hábitos de comunicação distintos.

Canais mais eficientes observados em utilities de saneamento

  • SMS: costuma apresentar alta taxa de leitura, ideal para notificações rápidas de vencimento e alerta de corte.
  • WhatsApp: geralmente apresenta boa taxa de conversão quando há interação humana ou modelo híbrido com chatbot.
  • E-mail: útil para clientes comerciais, industriais e órgãos públicos que lidam com rotinas administrativas mais estruturadas.
  • URA ativa: funciona bem para lembretes antes do corte e ofertas de negociação.
  • Push em aplicativo: tem baixo custo e fortalece relacionamento contínuo com o cliente de saneamento.
  • Carta: ainda é relevante para processos regulatórios, notificações formais e documentação jurídica.
  • Visita presencial: fundamental em áreas de difícil acesso ou para negociações com grande valor envolvido.

No saneamento, o cliente muitas vezes só percebe risco real quando recebe uma notificação clara e assertiva, preferencialmente por WhatsApp ou SMS. A Sabesp, por exemplo, reportou aumento na recuperação de crédito após adotar comunicação multicanal personalizada e integrada com o histórico de consumo e pagamento.

3. O elemento central da régua: segmentação por risco

Uma régua única para todos os clientes não funciona no saneamento. O ideal é segmentar a base considerando risco, perfil de consumo e comportamento de pagamento, de forma a direcionar esforços para onde o impacto será maior.

Critérios de segmentação recomendados

a) Perfil socioeconômico

  • Clientes de baixa renda e com tarifa social.
  • Clientes residenciais padrão.
  • Clientes comerciais e de serviços.
  • Clientes industriais.
  • Órgãos públicos e entidades assistenciais.

b) Histórico de pagamento

  • Pagadores regulares.
  • Pagadores intermitentes.
  • Crônicos inadimplentes.

c) Valor médio da conta

Clientes com alto valor médio de fatura demandam abordagem diferenciada, pois representam maior peso na receita do saneamento e maior potencial de impacto financeiro em caso de inadimplência prolongada.

d) Risco operacional

Áreas onde o corte é difícil ou inseguro, seja por geografia, seja por questões sociais, precisam de ações específicas, com maior ênfase em negociação, mediação comunitária e soluções sociais do que em ações repressivas.

Empresas como a Sanepar utilizam modelos de risco para ordenar a priorização das equipes de campo na cobrança. Já a Cagece evoluiu para modelos de score semelhantes aos utilizados por bancos, permitindo ações mais direcionadas e eficientes, o que fortalece toda a cadeia do saneamento.

4. Como construir a régua de cobrança perfeita no saneamento

A régua ideal precisa ser clara, automatizada, multicanal, regulamentada e adaptável ao território. A seguir, uma estrutura recomendada, consolidada a partir de boas práticas observadas no Brasil e em utilities internacionais de saneamento.

Etapa 1 – Lembrete pré-vencimento (D-2)

Ações preventivas evitam inadimplência. Empresas como a Copasa registraram redução no atraso médio quando passaram a enviar lembretes pré-vencimento.

Canais sugeridos: SMS, WhatsApp, push de aplicativo ou e-mail.

Tom da mensagem: breve, educativo e sem tom de cobrança, reforçando a importância do pagamento em dia para a continuidade do saneamento.

Etapa 2 – Notificação amigável (D+1 a D+5)

O objetivo é reduzir a sensação de descuido financeiro e lembrar o cliente de forma respeitosa.

Estratégia: comunicação leve com frases como “Identificou-se que sua fatura está vencida” e oferta de canais para segunda via e pagamento digital. Isso reduz resistência do usuário e melhora a taxa de acordo, o que fortalece o fluxo de caixa do saneamento.

Etapa 3 – Notificação formal (D+10 a D+15)

Nesta fase, o saneamento precisa seguir normas regulatórias, estabelecendo linguagem clara, objetiva e transparente, com indicação de prazos e possíveis consequências.

Canais: carta registrada, e-mail, SMS e WhatsApp, respeitando as exigências da agência reguladora local.

Etapa 4 – URA ativa e chatbot (D+20 a D+25)

O objetivo passa a ser facilitar o pagamento, oferecendo boletos, QR Code, opções de parcelamento e negociação automatizada.

Experiências de utilities internacionais, como Thames Water, mostram que a automação reduziu custos operacionais em processos de cobrança e contribuiu para maior eficiência no saneamento.

Etapa 5 – Ação de recuperação intensiva (D+30 a D+45)

Nesta fase, intensifica-se o contato. O saneamento pode utilizar mensagens mais firmes, porém respeitosas, com propostas de parcelamento e encaminhamento para canais oficiais de negociação presencial ou remota.

Empresas como a Aegea utilizam portais digitais que permitem acordos automatizados, melhorando a experiência do cliente e reduzindo custos de atendimento.

Etapa 6 – Aviso de suspensão (D+45 a D+60)

A depender da legislação local, notifica-se o cliente sobre possível suspensão do fornecimento, observando todas as exigências legais e regulatórias aplicáveis ao saneamento.

É essencial cumprir com rigor:

  • prazo mínimo entre a notificação e o corte;
  • modelo de notificação previsto pela agência reguladora;
  • exceções obrigatórias (como unidades de saúde, situações de vulnerabilidade e beneficiários de tarifa social).

A experiência de diversas companhias indica que uma grande parcela dos pagamentos ocorre entre o aviso de suspensão e o efetivo corte, reforçando a importância dessa etapa na régua de cobrança do saneamento.

Etapa 7 – Execução da suspensão (D+60 ou conforme regulação)

A suspensão deve ser realizada com segurança operacional e documental, com registro fotográfico, geolocalização e comprovação do ato, garantindo rastreabilidade e segurança jurídica.

Companhias como SaneaRio e Saae Sorocaba utilizam aplicativos de campo que registram foto, localização e horário, o que fortalece a governança do saneamento e a capacidade de defesa em eventuais questionamentos.

Etapa 8 – Recuperação pós-corte (até D+120)

O cliente, nesse ponto, costuma estar mais disposto a negociar. A régua deve prever:

  • parcelamentos mais longos para recompor o vínculo;
  • possibilidade de religação após pagamento parcial, quando permitido pela regulação;
  • comunicação educativa para evitar reincidência da inadimplência.

Empresas como a Embasa elevaram a taxa de recuperação ao reforçar os canais digitais pós-corte, o que gera impacto positivo direto na sustentabilidade do saneamento e na capacidade de investimento.

5. Personalização: a verdadeira virada de chave no saneamento

A régua de cobrança moderna se aproxima dos modelos adotados em energia elétrica e telecomunicações, porém com adaptações essenciais ao saneamento, já que o serviço é ainda mais sensível do ponto de vista social.

Avanços que transformam a régua de cobrança

  • Georreferenciamento de risco: permite priorizar áreas com maior histórico de inadimplência, integrando informações de saneamento, renda e perfil urbano.
  • Dados de consumo e hidrômetro inteligente: o corte pode ser precedido por análise de padrões que indiquem vulnerabilidade, consumo atípico ou possível vazamento.
  • Modelos preditivos: ao cruzar histórico socioeconômico, tarifas e sazonalidade, as utilities conseguem prever picos de inadimplência, como no período pós-festas ou em meses de maior gasto doméstico.
  • Análise de efetividade por canal: alguns operadores de saneamento obtêm taxas muito superiores de resposta em WhatsApp em comparação com cartas impressas.
  • Automação com IA: chatbots respondem dúvidas, emitem segunda via e negociam acordos, liberando equipes humanas para casos mais complexos.

Com mais informações e automação, o saneamento passa de um modelo reativo, focado apenas no corte, para um modelo proativo, baseado em prevenção, negociação e relacionamento contínuo.

6. A importância da regulamentação na régua de cobrança

O saneamento é um setor altamente regulado. A régua de cobrança deve respeitar:

  • legislação estadual e federal;
  • resoluções de agências reguladoras locais;
  • Normas de Referência da ANA relacionadas à estrutura tarifária e procedimentos comerciais;
  • direitos do consumidor;
  • prazos mínimos entre notificações e corte;
  • exceções obrigatórias para unidades de saúde, escolas, instituições essenciais e famílias em extrema vulnerabilidade.

A ANA, ao estruturar diretrizes tarifárias e orientações gerais, reforça a transparência e a previsibilidade como pilares do saneamento. Agências como ARSESP, AGERSA e outras exigem clareza nas notificações e rastreabilidade do processo, o que reforça a importância de uma régua de cobrança desenhada em conformidade com a regulação.

7. Exemplos práticos de boas réguas de cobrança no saneamento

Sabesp – São Paulo

Adoção de atendentes virtuais, expansão do uso de WhatsApp, segmentação por risco e notificações pré-vencimento. Os resultados incluem redução da inadimplência e maior digitalização dos acordos, apoiando diretamente a sustentabilidade do saneamento.

Sanepar – Paraná

Uso de planos de cobrança baseados em score de risco, com foco em clientes reincidentes e maior priorização de alto valor. Essa abordagem torna as ações mais eficientes e melhora o fluxo de caixa dos serviços de saneamento.

Caesb – Distrito Federal

Estratégia com forte uso de URA e acordos automáticos, ampliando a conveniência para o cliente e otimizando o trabalho das equipes internas relacionadas à cobrança e ao saneamento.

Aegea – Operadora privada em diversos municípios

Criação de portais digitais para negociação e uso intensivo de canais multicanais, com mensagens personalizadas para cada segmento de cliente, elevando a recuperação e fortalecendo a percepção de valor do saneamento.

Embasa – Bahia

Investimentos em atualização cadastral, ampliação de notificações digitais e uso de canais remotos pós-corte. Essas ações geraram aumento expressivo de acordos e contribuíram para maior previsibilidade financeira no saneamento baiano.

8. Indicadores-chave para medir a régua de cobrança no saneamento

Para saber se a régua funciona, é essencial monitorar indicadores que conectem cobrança, finanças e desempenho operacional do saneamento.

Principais indicadores recomendados

  • Índice de Inadimplência Geral (IIG): percentual de faturas não pagas após determinado prazo.
  • Índice de Recuperação de Receitas (IRR): quanto foi recuperado ao longo da régua.
  • Duração média da dívida: número médio de dias até o pagamento.
  • Custo por cobrança: quanto se gasta para recuperar cada real, incluindo equipes, sistemas e campo.
  • Eficácia por canal: taxa de conversão por SMS, WhatsApp, e-mail, URA, carta e visita.
  • Taxa de reincidência: indica se o processo educa o cliente ou apenas resolve o curto prazo.

9. Erros mais comuns na régua de cobrança no saneamento

Alguns erros se repetem em várias companhias de saneamento e comprometem o resultado da régua:

  • Utilizar apenas um canal de comunicação.
  • Ignorar atualização cadastral e contatos desatualizados.
  • Não personalizar mensagens por perfil de cliente.
  • Excesso de tom ameaçador, desgastando a relação.
  • Falta de integração entre sistemas comerciais e equipes de campo.
  • Cortes mal documentados, sem rastreabilidade.
  • Ausência de monitoramento sistemático de indicadores.

No saneamento, erros aparentemente pequenos podem gerar grandes passivos regulatórios, jurídicos e reputacionais, além de dificultar futuras negociações com comunidades e prefeituras.

10. A régua de cobrança perfeita no saneamento: síntese estratégica

Uma régua ideal no saneamento deve reduzir a inadimplência de forma contínua, diminuir custos operacionais, garantir conformidade regulatória, melhorar a satisfação do usuário e aumentar a previsibilidade de receita.

A régua perfeita é:

  • Digital, com forte uso de automação.
  • Preditiva, orientada por dados e modelos de risco.
  • Socialmente sensível, respeitando a natureza essencial do saneamento.
  • Automatizada, integrada a sistemas comerciais e de campo.
  • Georreferenciada, com visão territorial da inadimplência.
  • Fiscalmente responsável, alinhada a metas econômicas e regulatórias.

Quando estruturada dessa maneira, a régua de cobrança deixa de ser apenas um processo administrativo e passa a ser uma das principais engrenagens do saneamento moderno, garantindo equilíbrio financeiro, capacidade de investimento e continuidade na prestação de serviços de água e esgoto com qualidade.

Fontes