Como padronizar o processo de combate à fraude de água

A padronização do combate à fraude é um dos pilares mais estratégicos para garantir a segurança do abastecimento de água, a integridade dos sistemas comerciais e a conformidade regulatória nas companhias de saneamento. À medida que o setor avança e as agências reguladoras aumentam a capacidade de fiscalização, torna-se crucial evitar erros, divergências entre regionais e falhas de documentação que afetam tanto a receita quanto a credibilidade institucional.

Estudos de auditoria realizados em companhias brasileiras mostram que mais de 30% das sanções por fraude são revertidas devido a inconsistências procedimentais. Esse número impacta diretamente a capacidade de investimento no abastecimento de água e reduz a eficiência operacional, especialmente em regiões onde a demanda já é sensível.

Assim, criar fluxos padronizados, métodos de registro uniformes, critérios técnicos claros e processos auditáveis é indispensável para proteger a equidade ao cliente, a sustentabilidade financeira e a confiabilidade do abastecimento de água.

1. Por que a padronização é crítica para o abastecimento de água

Fraudes em ligações interferem significativamente no sistema de distribuição e podem comprometer o abastecimento de água de forma direta ou indireta. Irregularidades como desvios, manipulações de hidrômetros ou ligações clandestinas geram:

  • Redução da pressão na rede;
  • Alteração de vazões e micropressões;
  • Perdas aparentes elevadas;
  • Sobrecarga em setores sensíveis;
  • Balanço hídrico inconsistente.

Dados públicos de companhias como Sabesp, Cagece e Sanepar indicam que entre 30% e 45% das perdas aparentes estão relacionadas a irregularidades comerciais e submedições não tratadas adequadamente. Quando não há padronização entre unidades regionais (URs), essas fraudes passam despercebidas ou são tratadas de forma subjetiva, prejudicando diretamente o abastecimento de água.

Padronizar não é apenas organizar o processo, mas proteger a receita, a justiça ao cliente e a regularidade do abastecimento de água em curto, médio e longo prazo.

2. Diferenças de interpretação entre URs e seus impactos

A falta de alinhamento entre URs é uma das causas mais comuns de falhas no combate à fraude. Cada regional, muitas vezes, adota interpretações diferentes sobre:

  • O que caracteriza fraude;
  • Qual evidência é suficiente;
  • Quando submedição é técnica ou intencional;
  • Como descrever irregularidades em campo;
  • Como calcular a recuperação de consumo.

Essas divergências geram distorções e impactam diretamente:

  • A uniformidade das sanções;
  • A aderência às Normas de Referência da ANA;
  • A qualidade das informações repassadas à regulação;
  • A segurança jurídica e administrativa;
  • Os indicadores que afetam o abastecimento de água.

Para resolver esse cenário, companhias como Copasa, Aegea e Sabesp adotaram Manuais Corporativos de Fraude, com regras objetivas, fotos de exemplo, textos padronizados e procedimentos obrigatórios. A padronização reduz a subjetividade e fortalece o abastecimento de água ao prevenir reincidências e garantir coerência na atuação das URs.

3. Erros na geração de serviços, TIPs e registros

Os erros de registro são responsáveis por grande parte das reversões de sanções nas companhias de saneamento. A falta de padronização nas TIPs, GCS e serviços gera inconsistências graves que comprometem a recuperação de receita e enfraquecem as políticas de proteção ao abastecimento de água, pois fraudadores não são responsabilizados de forma adequada.

Para evitar esses problemas, é fundamental entender claramente o que são TIP e GCS.

3.1 O que é TIP – Termo de Irregularidade de Procedimento

A TIP (Termo de Irregularidade de Procedimento) é o documento técnico e formal, gerado pelo sistema comercial ou operacional, que descreve a irregularidade encontrada. Ele funciona como um “auto de infração” dentro da companhia de saneamento, registrando a ocorrência com valor jurídico, regulatório e operacional.

A TIP deve conter obrigatoriamente:

  • Tipo de fraude identificado;
  • Endereço e dados do imóvel;
  • Dados do hidrômetro (série, leituras, lacres);
  • Descrição objetiva e padronizada da irregularidade;
  • Evidências fotográficas anexadas;
  • Croqui ou esquema do ramal de abastecimento;
  • Relato técnico seguindo modelo corporativo;
  • Hora e data da inspeção;
  • Identificação do técnico responsável;
  • Informações que permitam auditoria futura.

Por se tratar de documento oficial, qualquer erro formal pode resultar em:

  • Anulação da sanção;
  • Reversão administrativa;
  • Perda de processo judicial;
  • Penalidade regulatória.

Quando a TIP é bem feita, o processo de combate à fraude ganha força, torna-se mais transparente e contribui diretamente para a proteção do abastecimento de água, uma vez que irregularidades são tratadas com base em evidências claras e rastreáveis.

3.2 O que é GCS – Registro de recuperação e cobrança por sanção

O GCS (denominação usada por diversas companhias; algumas chamam de “Serviço de Recuperação de Consumo” ou “Recuperação de Receita por Irregularidade”) é o registro financeiro e comercial que formaliza a cobrança da sanção aplicada ao cliente. Ele converte as evidências técnicas da TIP em valores monetários, de acordo com a estrutura tarifária e com as normas regulatórias.

O GCS materializa:

  • O cálculo da recuperação de consumo de água e esgoto;
  • As multas previstas em regulamentos internos e regulatórios;
  • Valores retroativos de serviços de abastecimento de água não medidos;
  • Critérios tarifários por categoria de uso (residencial, comercial, industrial, público);
  • O período de irregularidade comprovado, dentro dos limites legais.

O GCS deve ser vinculado automaticamente à TIP correspondente. Quando essa vinculação não existe, o processo é considerado frágil e vulnerável a auditorias, podendo ser facilmente questionado em instâncias administrativas e judiciais.

Um GCS mal elaborado significa:

  • Sanções indevidas ou mal calculadas;
  • Valores contestáveis e com alto risco de reversão;
  • Inconsistências perante a ANA e agências reguladoras estaduais;
  • Perda de receita que deveria retornar ao sistema de abastecimento de água e esgotamento;
  • Risco jurídico e reputacional elevado para a companhia.

Por esses motivos, companhias como Aegea, Sanepar e Embasa utilizam sistemas que impedem a criação de GCS sem TIP vinculada e exigem bloqueios automáticos caso faltem evidências técnicas mínimas. Essa integração entre TIP e GCS é fundamental para garantir que o combate à fraude seja efetivo, transparente e diretamente alinhado à sustentabilidade do abastecimento de água.

3.3 Erros mais comuns em TIPs e GCS

Entre os erros mais recorrentes que comprometem o processo, destacam-se:

  • TIP sem fotos ou com fotos insuficientes para caracterizar a irregularidade;
  • GCS sem período de irregularidade claramente comprovado;
  • Narrativas diferentes entre técnico de campo e analista;
  • Lacres sem numeração registrada ou sem comprovação de violação;
  • Serviço incorreto vinculado à ocorrência de fraude;
  • TIP classificada com código errado em relação à irregularidade real;
  • GCS calculado com metodologias diferentes entre URs.

Esses erros são responsáveis por até 35% das reversões em algumas companhias e afetam diretamente o abastecimento de água, pois reduzem a capacidade de reinvestimento, enfraquecem o caráter educativo das sanções e podem estimular novas irregularidades.

4. Cálculo de sanções conforme NR da ANA e legislações estaduais

O cálculo da sanção precisa seguir rigorosamente:

  • As Normas de Referência da ANA;
  • Os regulamentos estaduais e municipais;
  • Os critérios corporativos internos da companhia;
  • A prova material da irregularidade;
  • O período de irregularidade efetivamente comprovado.

A ausência de padronização leva a:

  • Cálculos divergentes entre URs para situações semelhantes;
  • Retroatividades sem base técnica consistente;
  • Insegurança jurídica e contestação constante das cobranças;
  • Auditorias regulatórias desfavoráveis;
  • Redução de recursos para manutenção e ampliação do abastecimento de água.

4.1 Boas práticas adotadas em companhias líderes

  • Calculadora corporativa blindada (em Excel, SAP, Power BI ou sistema próprio), impedindo alterações manuais nas fórmulas e puxando parâmetros tarifários automaticamente;
  • Histórico de consumo cruzado com registros de abastecimento de água (pressões, vazões, intermitências), evitando cobranças indevidas;
  • Metodologia única para retroatividade, respeitando períodos máximos previstos em regulamentos e sempre baseada em dados comprovados;
  • Mesa técnica de validação para sanções acima de determinado valor, garantindo revisão por múltiplos profissionais.

Essa abordagem protege o abastecimento de água ao garantir responsabilização justa e coerente por irregularidades, evitando tanto a penalização indevida de clientes quanto a impunidade de fraudes comprovadas.

5. Fluxo robusto e imune a auditorias

Um fluxo integrado e corporativamente definido reduz erros, aumenta a transparência e torna o processo mais resistente a auditorias internas, regulatórias e judiciais.

5.1 Etapa 1 – Identificação

  • Uso de IA para detectar padrões suspeitos de consumo;
  • Detecção de consumo zero em imóveis ativos;
  • Análise de degradação de vazão e perdas aparentes;
  • Mapeamento de reincidências por setor censitário;
  • Cruzamento de reclamações com dados de abastecimento de água.

5.2 Etapa 2 – Inspeção em campo

  • Fotos obrigatórias antes e depois da intervenção;
  • Vídeo curto exibindo o contexto da ligação;
  • Croqui padronizado do ramal e da localização do hidrômetro;
  • Registro da leitura, série e lacres do hidrômetro;
  • Checklist obrigatório antes de encerrar o serviço no sistema.

5.3 Etapa 3 – Classificação automática via TIP

  • Utilização de tipos de fraude corporativos padronizados;
  • Textos e descrições pré-definidos, evitando campos livres;
  • Obrigatoriedade de vínculo entre TIP, serviço de campo e GCS;
  • Redução de subjetividade entre técnicos e URs.

5.4 Etapa 4 – Cálculo da sanção

  • Uso da calculadora corporativa única;
  • Critérios uniformes para todas as URs;
  • Relatório automático anexado ao GCS com memória de cálculo;
  • Registros adequados para eventual auditoria regulatória.

5.5 Etapa 5 – Validação

  • Revisão por supervisor ou gestor comercial;
  • Análise por mesa técnica em valores elevados;
  • Auditoria mensal por amostragem, com feedback às URs.

5.6 Etapa 6 – Comunicação ao cliente

  • Texto padronizado e impessoal, porém claro;
  • Explicação objetiva da irregularidade e do cálculo;
  • Anexos técnicos disponíveis em caso de questionamento.

5.7 Etapa 7 – Monitoramento

  • Indicadores corporativos de desempenho do combate à fraude;
  • Taxa de reversão de sanções;
  • Número de inconsistências por UR;
  • Impacto financeiro nos investimentos em abastecimento de água.

6. Indicadores essenciais

Com base em práticas de Sabesp, Copasa, Aegea e Sanepar, alguns indicadores são fundamentais:

  • % de reversão de sanções por inconsistência;
  • Tempo médio entre inspeção e geração do GCS;
  • Número de fraudes reincidentes por setor ou UR;
  • Recuperação média por caso de fraude;
  • Índice de inconsistências em TIPs e GCS por UR;
  • Impacto nos investimentos destinados ao abastecimento de água e esgotamento.

Esses indicadores fortalecem a governança, aumentam a transparência e ajudam a direcionar recursos para ações que protegem o abastecimento de água e melhoram a eficiência comercial.

7. Benefícios diretos da padronização

Entre os principais benefícios da padronização do combate à fraude, destacam-se:

  • Redução real das perdas aparentes;
  • Diminuição de reversões administrativas e judiciais;
  • Maior segurança jurídica e regulatória;
  • Conformidade com as Normas de Referência da ANA;
  • Justiça no tratamento dos clientes em todas as URs;
  • Fortalecimento do abastecimento de água e da sustentabilidade financeira;
  • Indicadores corporativos mais confiáveis e transparentes;
  • Proteção da receita que viabiliza novos investimentos.

Companhias que adotaram modelos rigorosos de padronização registraram aumentos superiores a 20% na recuperação de consumo e reduções acima de 35% nas inconsistências, o que reforça a importância estratégica desse tema para a gestão moderna do abastecimento de água.

Fontes