Belo Horizonte não virou referência em drenagem urbana sustentável por acaso: a cidade redesenhou a relação com seus fundos de vale, tratou córregos como infraestrutura de primeira linha, conectou obras “cinzas” a soluções baseadas na natureza e costurou tudo isso com governança, monitoramento e financiamento internacional. O DRENURBS — Programa de Recuperação Ambiental de Belo Horizonte — nasce do Plano Diretor de Drenagem e rompe com a velha lógica de canalizar e esconder rios. Em escala de bacia, o programa estruturou intervenções em 47 bacias, abarcando cerca de 200 km de cursos d’água sobre 177 km² (54% do território), com prioridade para populações expostas a inundações, e organizou a ação municipal em três frentes: obras (tratamento de fundo de vale, bacias de detenção, parques lineares e saneamento), gestão socioambiental (educação, remoções e reassentamentos dignos) e fortalecimento institucional (mapas de risco, Carta de Inundações, rede de alerta e SIG de drenagem). Esse arranjo — técnico, social e institucional — é o que transforma drenagem em política urbana e não só em obra de engenharia.
A virada de chave veio quando a cidade passou a definir “vazões de restrição” e metas por sub-bacia, planejando do topo para jusante e evitando transferir o pico de cheias para o vizinho. Entre 2004 e os anos seguintes, o DRENURBS executou intervenções estruturantes em cinco sub-bacias (Bonsucesso, Engenho Nogueira, Nossa Senhora da Piedade, Primeiro de Maio e Av. Baleares), ao mesmo tempo em que criava instrumentos permanentes: a Carta de Inundações (2009), os Núcleos de Alerta de Chuvas – NAC (2009) e o Sistema de Monitoramento Hidrológico e Alerta (a partir de 2011). Na prática, isso significa ter modelo hidráulico calibrado, pontos críticos mapeados, sirenes e protocolos de resposta comunitária — um ecossistema de gestão de risco que reduz perdas humanas e materiais a cada estação chuvosa.
O caso do Parque Primeiro de Maio ilustra o DNA do programa: uma área antes degradada foi convertida em parque linear com bacia de detenção, lago, trilhas, quadra e equipamentos de lazer, preservando nascentes e requalificando o espaço público ao redor. O parque, com cerca de 33 mil m² e nove nascentes (cinco visíveis), integra as ações DRENURBS/Nascentes na macrobacia do Onça, mostrando como controle de cheias, qualidade da água e uso do solo podem andar juntos quando a drenagem conversa com o desenho urbano. Na escala da cidade, intervenções desse tipo multiplicam superfícies permeáveis, oferecem armazenamento distribuído, interceptam esgoto e elevam a salubridade ambiental dos bairros ribeirinhos.
Nada disso se sustenta sem dinheiro e método. BH estruturou uma carteira plurianual e buscou o Banco Interamericano de Desenvolvimento, combinando empréstimos e contrapartidas municipais. Somando as etapas, o contrato com o BID alcançou US$ 138 milhões na 1ª etapa e US$ 110 milhões na suplementar — esta última, com US$ 55 milhões de empréstimo e US$ 55 milhões de contrapartida local — garantindo previsibilidade para obras, educação ambiental e modernização dos sistemas de gestão. A mensagem para gestores é direta: drenagem sustentável requer CAPEX, OPEX e governança de projeto, mas os multilaterais financiam quando a cidade apresenta plano de bacia, indicadores, monitoramento e co-benefícios urbanísticos.
A estratégia segue viva e em expansão: em março de 2025, o BID aprovou uma cooperação técnica não reembolsável para preparar a segunda etapa do DRENURBS (“DRENURBS 2”), apoiando estudos, projetos e documentos operacionais para nova rodada de intervenções, com foco na eficiência de execução. Em bom português: BH está institucionalizando o ciclo “planejar–financiar–executar–medir–ajustar”, e isso explica por que a cidade se consolidou como laboratório brasileiro de infraestrutura verde-azul aplicada à drenagem.
Para quem atua no saneamento, as lições são objetivas e aplicáveis: tratar drenagem como política de bacia (e não como coleção de obras isoladas), atrelar cada canal a um parque linear sempre que possível, disseminar bacias de detenção e soluções de infiltração no tecido urbano consolidado, integrar drenagem e esgotamento (interceptores e controle de cargas difusas são condição para parques vivos), e, sobretudo, manter uma infraestrutura de inteligência — Carta de Inundações atualizada, rede telemétrica, SIG de drenagem, indicadores e governança colegiada (COMUSA, Fundo Municipal de Saneamento, convênios com a concessionária) — que permita decidir com dados e responder com rapidez. Quando cidades tratam a água da chuva como ativo urbano, e não como inimiga a ser varrida para jusante, a conta fecha: picos de cheia caem, a qualidade da água sobe, o valor do solo aumenta e a população se apropria do espaço público. É exatamente isso que o DRENURBS comprova — com escala, método e resultado.
Se você precisa de um “norte” para sair do ciclo de piscinões emergenciais e canalizações sem co-benefícios, BH já fez a lição de casa: planeje por bacia, traduza em carteira multianual, busque financiamento estruturado, amarre social + engenharia + operação em um programa único, e meça tudo o tempo todo. Drenagem urbana sustentável não é moda, é governança aplicada à água — e Belo Horizonte mostrou que dá para fazer.



