Morosidade ameaça avanço do saneamento no Brasil

Panorama e contexto

O acesso ao saneamento no Brasil ainda é profundamente desigual. Apesar de avanços importantes, muitos municípios seguem enfrentando sérios desafios para garantir abastecimento de água potável, coleta e tratamento de esgoto a toda a população. A legislação vigente, com o Novo Marco Legal do Saneamento, definiu metas ambiciosas para 2033: cobertura de água potável para 99% da população e tratamento de esgoto para 90% das pessoas atendidas.

Essas metas só serão alcançadas se houver um robusto aporte de recursos, contratos regulares, gestão eficiente e, sobretudo, superação dos gargalos institucionais e administrativos que dificultam a execução de obras e a expansão dos serviços de saneamento. Em muitos casos, a dificuldade não é apenas financeira, mas também de organização interna, governança e velocidade nas decisões.

Recentemente, o presidente da Copasa, companhia de saneamento de Minas Gerais, destacou que a “morosidade estatal” representa um risco real para a universalização do saneamento. O alerta chama a atenção de todo o setor, pois revela que, mesmo com planos de investimento expressivos, a lentidão de processos públicos e entraves burocráticos podem impedir que o saneamento avance no ritmo necessário.

Diante desse cenário, ganha relevância a discussão sobre como tornar o saneamento mais eficiente, mais ágil e mais aderente às metas de universalização. Profissionais do setor precisam compreender tanto os aspectos financeiros quanto os obstáculos institucionais que ainda freiam a expansão dos serviços.

O que diz a experiência da Copasa sobre morosidade e investimento

Na entrevista concedida à imprensa, o presidente da Copasa informou que a empresa ampliou significativamente sua capacidade de investimento nos últimos anos. Enquanto em 2019 os aportes giravam em torno de algumas centenas de milhões de reais, o plano atual prevê investimentos anuais superiores a bilhões de reais, com um total estimado em R$ 17 bilhões até 2029 para ampliar infraestrutura, modernizar sistemas e reforçar a qualidade dos serviços de saneamento.

De forma concreta, a Copasa já atingiu a meta de abastecimento de água em sua área de atuação, com cobertura próxima a 99% da população atendida. No entanto, o índice de tratamento de esgoto permanece na faixa de 78%, ainda abaixo da meta legal de 90% até 2033. Essa diferença mostra que o saneamento ainda convive com uma forte assimetria entre o serviço de água e o serviço de esgoto.

Segundo a direção da companhia, mesmo com recursos disponíveis e projetos estruturados, a morosidade estatal atrasa licitações, obras, contratos e liberações de licenças, o que prejudica diretamente a execução de investimentos em saneamento. Em outras palavras, o dinheiro existe, mas a velocidade de aplicação fica comprometida por causa da estrutura administrativa lenta e de processos pouco eficientes.

Para reduzir essa lentidão, a Copasa vem adotando medidas internas, como a criação de um Centro de Serviços Compartilhados (CSC), a padronização de processos corporativos e o foco em redução de perdas e aumento de eficiência. A empresa sinaliza que esse movimento é importante independentemente da discussão sobre privatização, pois visa tornar o saneamento mais produtivo e sustentável no longo prazo.

Situação nacional: dados e desafios do saneamento

Níveis de cobertura ainda insuficientes

Mesmo com o avanço de alguns estados e capitais, o Brasil ainda apresenta lacunas significativas no saneamento básico. Estimativas recentes indicam que milhões de pessoas seguem sem acesso à água potável de forma regular e segura. Além disso, quase metade da população não dispõe de coleta formal de esgoto, e uma parcela ainda maior não tem acesso ao tratamento adequado desses efluentes.

Enquanto algumas grandes cidades já se aproximam das metas de universalização, muitos municípios de pequeno e médio porte ainda convivem com sistemas precários de saneamento. A realidade é especialmente desafiadora em áreas periféricas urbanas, assentamentos irregulares e zonas rurais, onde o saneamento muitas vezes é inexistente ou depende de soluções individuais, como fossas rudimentares, que podem contaminar solos e corpos hídricos.

Volume de recursos necessários

Para atingir a universalização do saneamento, diversos estudos apontam que o país precisa de investimentos que podem superar a marca de R$ 600 bilhões, chegando a cerca de R$ 900 bilhões dependendo do cenário considerado. Esses recursos são necessários tanto para ampliar redes de água e esgoto quanto para modernizar estações de tratamento, reduzir perdas e implantar tecnologias mais eficientes.

Entretanto, o nível médio de investimento anual em saneamento ainda está abaixo do ideal. Em muitos municípios, o valor investido por habitante é insuficiente para garantir a expansão e a manutenção adequada da infraestrutura existente. Assim, o saneamento avança, mas em um ritmo que não é compatível com o prazo estabelecido pelo marco regulatório.

Desigualdades regionais e operacionais

As desigualdades regionais são um dos aspectos centrais na análise do saneamento. Estados com empresas estruturadas e maior capacidade de investimento conseguem avançar mais rápido, enquanto regiões com menor arrecadação e estruturas frágeis sofrem para cumprir novos padrões de cobertura e qualidade.

Além disso, há diferenças na eficiência operacional. Sistemas antigos, com redes envelhecidas e altos índices de perdas de água, exigem mais recursos para manutenção e ampliação. Quando o saneamento é prestado por estruturas pouco profissionalizadas, a governança dos projetos se torna mais difícil, aumentando o risco de atrasos, paralisações e problemas contratuais.

Por que a morosidade estatal prejudica o saneamento

A morosidade estatal representa uma combinação de fatores que, na prática, retardam o avanço do saneamento. Esse conjunto inclui burocracia excessiva, processos decisórios lentos, falta de integração entre órgãos, dificuldades na obtenção de licenças e insegurança regulatória. Em um setor que demanda grandes investimentos e planejamento de longo prazo, essa lentidão passa a ser um dos maiores riscos.

Entre os principais impactos da morosidade sobre o saneamento, destacam-se:

  • Atraso em obras e licitações: projetos importantes para ampliar redes de água e esgoto levam anos entre a concepção, o processo licitatório e a execução, o que faz com que o saneamento chegue tardiamente às populações mais vulneráveis.
  • Barreiras à atração de investimentos: investidores públicos e privados exigem previsibilidade. Quando o ambiente regulatório é instável e os processos são lentos, o saneamento perde oportunidades de financiamento e parcerias.
  • Inércia institucional: em muitos municípios, a falta de equipes técnicas capacitadas e a fragmentação de responsabilidades dificultam a priorização do saneamento, que compete com outras demandas locais.
  • Ineficiência operacional: estruturas pouco ágeis acumulam retrabalho, atrasos e desperdícios, o que compromete o uso racional de recursos e reforça a sensação de que o saneamento “não sai do lugar”.

Em síntese, a morosidade estatal reduz a capacidade de transformar planos em obras concretas, afetando diretamente a possibilidade de universalizar o saneamento dentro do prazo legal. Mesmo companhias que ampliam seus investimentos, como a Copasa, ficam expostas a esse risco sistêmico.

Caminhos para superar gargalos e acelerar o saneamento

Modernização institucional e administrativa

Uma estratégia prioritária para acelerar o saneamento é a modernização institucional. Isso inclui a revisão de fluxos internos, a criação de estruturas como centros de serviços compartilhados, a digitalização de processos e a adoção de sistemas de gestão integrados. Ao padronizar rotinas e reduzir etapas desnecessárias, as empresas ganham agilidade e conseguem tirar projetos de saneamento do papel com mais rapidez.

Outra frente importante é a capacitação de equipes, tanto nas companhias de saneamento quanto nos órgãos públicos responsáveis por licenciamento, regulação e controle. Profissionais bem preparados tomam decisões mais rápidas e fundamentadas, o que reduz o risco de contestações e retrabalho.

Regularização e padronização de contratos

Muitos municípios ainda operam com contratos de saneamento desatualizados ou irregulares. Essa situação dificulta a definição de metas claras, compromete a segurança jurídica e afasta investimentos de longo prazo. A regularização contratual, com prazos bem definidos e obrigações de universalização, é fundamental para destravar o setor.

Ao padronizar contratos e integrá-los às exigências do marco regulatório, as empresas de saneamento conseguem planejar melhor seus aportes e priorizar obras estruturantes. Além disso, a clareza contratual fortalece a atuação das agências reguladoras, que passam a ter parâmetros objetivos para fiscalizar o cumprimento das metas.

Atração de investimentos e alocação eficiente de recursos

Sem recursos consistentes, o saneamento não avança. Por isso, é essencial combinar fontes de financiamento público com capital privado, por meio de concessões, parcerias público-privadas (PPPs) e, quando adequado, processos de privatização. O ponto central é garantir marcos regulatórios estáveis e mecanismos de proteção aos usuários, especialmente os mais vulneráveis.

Além de captar recursos, é necessário alocá-los de forma eficiente. Isso significa priorizar áreas com maiores déficits de saneamento, reduzir perdas de água, modernizar estações de tratamento e implantar tecnologias que otimizem custos operacionais. Um saneamento mais eficiente libera recursos para novas obras, criando um círculo virtuoso de investimento e expansão.

Transparência, regulação e fiscalização

Transparência é um elemento-chave para fortalecer o saneamento. A divulgação de indicadores de cobertura, qualidade da água, índice de perdas e nível de tratamento de esgoto estimula o controle social e ajuda a direcionar políticas públicas. Quando a população e os órgãos de controle acompanham de perto o desempenho das empresas, a pressão por resultados aumenta.

Da mesma forma, uma regulação forte e independente é indispensável. Agências reguladoras com autonomia técnica e capacidade de monitoramento garantem que metas de saneamento sejam cumpridas, que tarifas sejam justas e que investimentos sejam efetivamente realizados. Com uma regulação clara, o risco percebido por investidores diminui, o que beneficia diretamente a expansão dos serviços de saneamento.

Implicações para o setor e importância do compromisso técnico

A universalização do saneamento não é apenas uma exigência legal. Trata-se de um compromisso com a saúde pública, a dignidade humana e o desenvolvimento social e econômico. A ausência de saneamento adequado está diretamente associada a doenças de veiculação hídrica, à contaminação de mananciais, à perda de produtividade e à perpetuação de desigualdades.

Para profissionais do setor, a mensagem central é clara: é preciso ir além da discussão sobre modelos de gestão e focar na melhoria concreta da governança, da eficiência e da coordenação entre instituições. O saneamento só avançará se planos, investimentos e decisões estiverem alinhados em torno de metas comuns e prazos realistas.

No caso de empresas como a Copasa, que já ampliaram significativamente seu volume de investimentos, a morosidade estatal continua sendo um desafio central. Se os entraves administrativos, regulatórios e institucionais não forem enfrentados, o risco é que o saneamento permaneça aquém das metas, mesmo com recursos disponíveis.

Por outro lado, se esses gargalos forem superados, o setor dispõe de instrumentos para avançar com força: tecnologias de reuso, novas soluções em tratamento de água e esgoto, digitalização de redes, telemetria e gestão inteligente de ativos. Com planejamento, transparência e compromisso técnico, o saneamento pode, de fato, chegar a todos.

Conclusão

O Brasil vive um momento decisivo para o saneamento. As metas de universalização estão definidas e amplamente debatidas. Resta agora enfrentar os obstáculos que impedem sua realização. Entre esses obstáculos, a morosidade estatal se destaca como um fator crítico, pois afeta diretamente a velocidade de implantação de obras, a segurança regulatória e a capacidade de atração de investimentos.

Superar essa morosidade exige modernização institucional, contratos regulares, regulação forte, transparência e uma atuação coordenada entre estados, municípios, empresas e sociedade civil. Quando esses elementos se combinam, o saneamento deixa de ser um problema crônico e se transforma em solução estruturante para a saúde, o meio ambiente e o desenvolvimento econômico.

Em última análise, investir em saneamento é investir em vida e futuro. A escolha entre manter a morosidade ou acelerar a universalização é, na prática, uma escolha sobre o tipo de país que se deseja construir.

Fontes