Por que turbinas em adutoras ainda não decolaram?

A geração de energia elétrica com turbinas instaladas em adutoras e redes de água tratada, muitas vezes chamada de micro-hidrelétrica em rede de saneamento, aproveita a pressão disponível que hoje é dissipada em válvulas. Embora a solução seja tecnicamente sólida e, além disso, esteja alinhada às metas ESG do setor de saneamento, a adoção ainda é lenta. As razões combinam desafios hidráulicos, incertezas econômicas, exigências regulatórias e priorização orçamentária. Entretanto, quando bem dimensionados e integrados, projetos em sistemas de abastecimento têm entregado kWh relevantes, reduzindo custos operacionais e fortalecendo a resiliência energética do saneamento.

1) Barreiras técnicas e operacionais

Hidráulica variável em sistemas de saneamento

Vazões e pressões nas adutoras não são constantes. Mudanças por horário de pico, níveis de reservatório, manobras operacionais e demandas sazonais afastam as turbinas do ponto ótimo. Em saneamento, isso significa que o rendimento elétrico se degrada quando a queda útil ou a vazão disponível se alteram além do envelope nominal. Portanto, desde o estudo de viabilidade, é crucial mapear Qmin, Qmed, Qmax e Hutil, além de estimar horas/ano em cada faixa de operação.

Compromisso entre controle de pressão e geração

Em muitos pontos, a geração substitui ou complementa válvulas redutoras de pressão. Assim, o projeto deve garantir a pressão de serviço para o abastecimento de água e, ao mesmo tempo, estabilizar a operação do gerador. Disso decorre a necessidade de by-pass, lógica de controle com setpoints de pressão e, quando aplicável, inversores regenerativos para modular a rotação e manter a qualidade do serviço de saneamento.

Automação, medição e confiabilidade

Sistemas de saneamento exigem alta disponibilidade. Logo, a arquitetura deve contemplar CLP/SCADA, telemetria, proteção elétrica, medição fiscal e rotas de manutenção que não comprometam o abastecimento. Um bom desenho prevê redundância hidráulica e a possibilidade de isolar o conjunto turbogerador sem interromper o sistema.

2) CAPEX, OPEX e payback real

Investimento vai além da turbina

O CAPEX típico inclui obra civil (casa de força/abrigo), eletromecânica, automação/telemetria, medição homologada, interligação elétrica, adequações de proteção e o próprio by-pass. O OPEX envolve manutenção de mancais/vedações, limpeza, inspeções, além de eventuais paradas preventivas. Em cenários com vazão muito variável, a energia anual arrecadada (kWh/ano) cai, alongando o retorno e reduzindo a TIR.

Economia medida em R$/MWh evitado

Para priorização em portfólio de saneamento, vale expressar o resultado em R$/MWh evitado e payback, com análise de sensibilidade para tarifas e bandeiras. Em geral, quanto maior o produto vazão × queda × horas/ano, mais robusto o caso de negócio — desde que a operação hidráulica permaneça dentro de limites seguros para o abastecimento de água.

3) Integração elétrica e marco regulatório

Autoconsumo local e compensação

Mesmo quando o consumo local absorve a geração, muitas operações de saneamento buscam compensar outras unidades (autoconsumo remoto) via regras de geração distribuída. O enquadramento conforme a legislação vigente, a conexão com a distribuidora, a medição e a contabilização dos créditos precisam ser definidos desde o anteprojeto para evitar atrasos e revisões de CAPEX.

Influência das tarifas no saneamento

Estruturas tarifárias, revisões periódicas e eventuais mudanças em compensação impactam diretamente o payback. Por isso, o dimensionamento deve incorporar cenários tarifários realistas, além de considerar o perfil horário de geração e consumo das unidades do saneamento.

4) Governança, priorização e compras públicas

Concorrência por orçamento dentro do saneamento

Projetos de turbogeração competem com iniciativas de perdas, setorização, macromedição, telemetria e fotovoltaico. Como fotovoltaico oferece desempenho bastante previsível, micro-hídrica em adutoras precisa apresentar casos-piloto e KPIs claros para ganhar escala. Em compras públicas, a modelagem contratual (EPC + O&M ou performance-based por kWh entregue) ajuda a mitigar riscos.

Capacitação de times e padronização

Equipes de operação e manutenção em saneamento devem ser treinadas para a nova rotina eletromecânica. Além disso, catálogos com envelopes de desempenho (turbinas, BFTs e turbogeradores) e especificações padrão aceleram análises e compras, reduzindo o custo de transação.

Onde vem dando certo no Brasil — com números

Águas de Joinville (SC) — turbina em adutora

Em operação desde janeiro de 2024, a instalação em adutora de água tratada passou a gerar aproximadamente 40 kW, acumulando cerca de 28.800 kWh/mês em regime contínuo. A energia compõe créditos na distribuidora e a companhia reportou economia próxima de R$ 300 mil/ano. O ponto é emblemático porque aproveita a pressão já existente e mantém o nível de serviço do saneamento.

SABESP (SP) — Bomba Funcionando como Turbina (BFT) em Barueri–Tamboré

Estudo técnico da companhia registrou instalação de BFT na entrada do reservatório Barueri–Tamboré, com vazão de ~400 L/s e aproveitamento de ~30 mca. O conjunto nominal é de ~90 kW e a economia reportada foi de ~R$ 25 mil/mês após a implantação. Além de comprovar viabilidade, o caso delineou plano para replicação em outros pontos de saneamento com hidráulica favorável.

SEMAE São Leopoldo (RS) — turbogerador com controle de pressão

Em São Leopoldo, a autarquia implantou turbogerador na rede de distribuição (Cohab Feitoria) integrando controle de pressão e geração elétrica. Ainda que a publicação institucional não detalhe kWh médios, o caso demonstra integração operacional em rede existente, reforçando que é possível conciliar confiabilidade do saneamento com produção de energia.

Quatro lições práticas para acelerar no saneamento

1) Escolher pontos com hidráulica previsível

Entradas de reservatórios, adutoras com desnível e VRPs críticas são candidatos naturais. Quanto mais estável for a vazão e a queda útil, melhor a previsibilidade de kWh/ano.

2) Desenhar by-pass e lógica de pressão antes do gerador

O objetivo primário (manter pressão de serviço) não pode ser comprometido. A geração deve vir como ganho adicional, com contingência para manutenção e falhas.

3) Definir o modelo elétrico na origem

Conexão, medição, compensação e enquadramento devem ser definidos no anteprojeto, com alinhamento à distribuidora. Isso reduz retrabalho e incertezas de cronograma.

4) Vender o projeto como eficiência energética

Portfólios de saneamento são guiados por resultados. Apresentar R$/MWh evitado, payback e sensibilidade tarifária facilita a priorização frente a outras soluções.

Checklist rápido para equipes técnicas do saneamento

Levantamento de dados

Medir ou estimar Qmin, Qmed, Qmax, Hutil, horas/ano e construir cenários de operação. Simular em EPANET (ou equivalente) para mapear envelopes de desempenho.

Engenharia de aplicação

Definir setpoints de pressão, topologia de by-pass, seleção do tipo de turbina (ou BFT) e integração com automação/SCADA.

Modelo de negócio

Calcular geração anual esperada, CAPEX completo, OPEX, R$/MWh evitado e payback em diferentes cenários tarifários. Avaliar contratação por desempenho (pagamento por kWh entregue/pressão garantida).

Operação e manutenção

Padronizar rotinas de inspeção, limpeza e trocas de componentes; estabelecer indicadores de disponibilidade elétrica e de qualidade de serviço do abastecimento de água.

Conclusão

Apesar dos desafios, a geração com turbinas em adutoras é uma oportunidade concreta para o saneamento. Com seleção criteriosa de pontos, integração hidráulica/ elétrica bem resolvida e governança de portfólio, é possível transformar pressões excedentes em kWh mensuráveis, reduzindo custos e aumentando a sustentabilidade operacional das companhias de saneamento.

Fontes (links clicáveis)