Introdução: lições da energia para o saneamento
A recente sanção da Lei da Tarifa Social de Energia Elétrica, decorrente da MP 1.300/2025, marcou um avanço relevante de justiça tarifária no setor elétrico. O novo modelo assegura gratuidade até 80 kWh/mês para famílias de baixa renda e é financiado pela Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um fundo setorial que redistribui custos e preserva o equilíbrio econômico-financeiro das concessionárias. Esse arranjo comprova, de forma objetiva, que é possível promover inclusão social com previsibilidade, transparência e sustentabilidade regulatória. Entretanto, no saneamento ainda não existe um mecanismo nacional equivalente à CDE. Apesar de existirem instrumentos de subsídio cruzado e eventuais complementos públicos, eles não são suficientes para custear, de modo contínuo e uniforme, os descontos da Tarifa Social de Água e Esgoto. Para que o saneamento avance com segurança jurídica e estabilidade econômico-financeira, é urgente a criação de um fundo setorial inspirado na CDE, com governança clara e fontes de custeio robustas.
A situação atual do saneamento e o desafio da tarifa social
O saneamento brasileiro atravessa uma fase de expansão de metas, aumento de cobertura e exigências regulatórias mais rigorosas. Nesse contexto, a tarifa social é um direito essencial, mas sua implementação integral pressiona os indicadores econômico-financeiros dos prestadores, especialmente onde a base de usuários é de baixa renda, a densidade é menor e a inadimplência é estruturalmente mais alta. Para manter a continuidade, a qualidade e a universalização, é indispensável um desenho de financiamento que não dependa apenas do subsídio cruzado local.
1) Marco legal da tarifa social no saneamento
A Lei 14.898/2024 estabeleceu, em âmbito nacional, parâmetros mínimos para a Tarifa Social de Água e Esgoto (TSAE). Em termos práticos, a lei determina concessão de descontos a famílias inscritas no CadÚnico e beneficiários do BPC, com financiamento prioritário por subsídio cruzado entre categorias tarifárias. Há menção a um possível fundo federal complementar, mas sua materialização ainda depende de regulamentação detalhada e previsões orçamentárias específicas. Assim, o arcabouço existe, porém carece de um instrumento de escala que assegure estabilidade intertemporal.
2) Amplitude do benefício e impacto na receita
Estudos e projeções setoriais indicam que até 30% da base residencial pode se qualificar à TSAE em diferentes municípios. Quando se aplicam descontos mínimos de 50% na primeira faixa de consumo, a perda de receita recorrente torna-se relevante. E, embora a regulação permita recomposição tarifária, a elasticidade-renda, a pressão inflacionária e a sensibilidade política impõem limites práticos ao repasse imediato. Em outras palavras, sem um fundo nacional, o saneamento fica exposto a volatilidades que ameaçam a sustentabilidade econômico-financeira das concessões.
3) Fontes atuais de financiamento e suas limitações
O saneamento se financia via tarifas, capex apoiado por linhas de crédito (FGTS, BNDES, FINISA), debêntures incentivadas e aportes orçamentários pontuais. Entretanto, nenhum desses instrumentos tem a capilaridade redistributiva de um fundo setorial nacional. O subsídio cruzado interno funciona, mas tem alcance restrito: companhias com baixa base comercial/industrial e municípios de pequeno porte não conseguem sustentar longamente grandes descontos. Linhas de crédito e debêntures apoiam investimento, mas não resolvem a cobertura do subsídio operacional recorrente da tarifa social. Já os aportes públicos são intermitentes, disputam espaço fiscal e raramente garantem previsibilidade plurianual.
Limitações dos mecanismos existentes
Mesmo com boa regulação, governança e esforço de eficiência, há barreiras estruturais:
- Base tarifária estreita: localidades com pouca atividade comercial/industrial não conseguem “equilibrar” o desconto social apenas com subsídio cruzado.
- Risco de efeito-preço: aumentos nas demais categorias para cobrir a TSAE podem elevar inadimplência, reduzir consumo regularizado e incentivar ligações clandestinas.
- Lentidão orçamentária: dispositivos legais de complementação sem fonte estável não asseguram cobertura tempestiva do déficit operacional.
- Assimetrias regionais: prestadores em áreas vulneráveis operam com custos unitários mais altos (dispersão urbana, topografia, energia, químicos), agravando a insuficiência do subsídio local.
- Choques macroeconômicos: variações de insumos (energia, polímeros, coagulantes), câmbio e salários pressionam OPEX e expõem o saneamento à necessidade de reequilíbrios frequentes.
Por que criar uma “CDE do saneamento”
Um fundo setorial nacional — uma “CDE do saneamento” — equalizaria riscos e daria previsibilidade. O objetivo é financiar de forma centralizada os descontos da TSAE, reduzir assimetrias, evitar repasses abruptos e sustentar o ciclo virtuoso de investimento e eficiência. Além disso, ao ancorar a política social em um mecanismo estável, o regulador fortalece a confiança de credores e investidores, diminuindo o custo de capital e ampliando o acesso a financiamentos de longo prazo.
Finalidades essenciais
- Custeio direto do subsídio: compensação mensal/anuais às operadoras, baseada em consumo social auditado e regras transparentes.
- Equalização regional: critérios que considerem renda, densidade, custos operacionais e metas de universalização do saneamento.
- Estabilidade regulatória: previsibilidade plurianual, com bandas de variação e gatilhos de revisão previamente definidos.
- Forte governança: auditoria independente, comitê técnico interinstitucional e controle social efetivo.
Como financiar a CDE do saneamento
O desenho financeiro precisa ser diversificado para diluir riscos e garantir escalabilidade:
- Encargo setorial incidente nas faturas de água/esgoto (percentual pequeno, progressivo por faixas de consumo, com salvaguardas para baixa renda).
- Complemento do Orçamento da União em situações de estresse (gatilhos anticíclicos, condicionados a metas de eficiência).
- Transferências estaduais/municipais, com contrapartidas regulatórias e priorização de áreas críticas do saneamento.
- Parcela de outorgas de concessões e renovações, vinculada estatutariamente ao fundo.
- Vinculação de receitas específicas (ex.: parcela de taxas sobre uso de recursos hídricos, quando cabível).
Com esse mix, o fundo evita depender de uma única fonte sujeita a contingenciamento e mantém a capacidade de pagamento contínua.
Benefícios esperados para o setor
- Menor volatilidade tarifária: os ajustes nas demais categorias tornam-se moderados e previsíveis.
- Sustentabilidade econômico-financeira: prestadores mantêm indicadores de cobertura de OPEX e serviço da dívida mais estáveis.
- Justiça social ampliada: custo do benefício é socializado nacionalmente, e não concentrado em economias locais frágeis.
- Universalização acelerada do saneamento: áreas de baixa viabilidade passam a ter horizonte de expansão realista.
- Ambiente de investimentos: previsibilidade reduz prêmio de risco, favorecendo captação via debêntures e crédito de longo prazo.
Argumentos técnicos para reguladores e operadores
Para os profissionais de saneamento, três pilares justificam a proposta:
- Escala e diversificação: riscos e custos da TSAE são diluídos em base nacional, reduzindo a probabilidade de crises localizadas.
- Eficiência e padronização: um regulamento único de auditoria, mensuração e pagamento do subsídio aumenta a confiabilidade dos dados e a comparabilidade de desempenho.
- Transparência e controle: relatórios públicos, indicadores de elegibilidade e trilhas de auditoria fortalecem o controle social.
Exemplo numérico simplificado
Imagine um município com 100 mil ligações residenciais, dos quais 30% (30 mil) são elegíveis à TSAE com 50% de desconto na primeira faixa. Se a receita média mensal por ligação nessa faixa for R$ 50, o subsídio mensal totaliza R$ 750 mil. Sem fundo, a recomposição via subsídio cruzado exigiria acréscimo médio superior a R$ 10 por ligação das demais categorias, pressionando inadimplência e consumo regularizado. Com uma CDE do saneamento cobrindo, por exemplo, 60% do subsídio (R$ 450 mil), o remanescente (R$ 300 mil) seria rateado localmente, reduzindo o acréscimo médio para cerca de R$ 4,30 por ligação — um patamar mais palatável, que diminui o risco regulatório e preserva a trajetória de investimentos.
Objeções previstas e respostas técnicas
“Novo fundo encarece contas.” Haverá custo marginal, mas significativamente menor do que repassar integralmente o subsídio às demais categorias. Além disso, regras de eficiência (perdas, produtividade, adimplência) podem condicionar aportes, favorecendo ganhos operacionais e mitigando repasses.
“Burocracia e governança complexas.” A solução é aproveitar estruturas existentes (ANA, Secretaria Nacional de Saneamento, agências subnacionais) e instituir governança enxuta, com auditoria independente e indicadores padronizados de desempenho e elegibilidade.
“O subsídio cruzado atual já resolve.” Em muitos sistemas, não. A heterogeneidade regional do saneamento torna o subsídio local insuficiente, especialmente onde custos unitários são altos e a base pagante é pequena. Um fundo nacional equaliza assimetrias e estabiliza o equilíbrio econômico-financeiro.
Conclusão
O saneamento é política pública estratégica, com externalidades positivas em saúde, educação, produtividade e meio ambiente. A tarifa social é instrumento imprescindível de equidade, mas sua sustentabilidade exige um arranjo financeiro de escala nacional. À luz do sucesso do setor elétrico, a criação de uma CDE do saneamento — com fontes diversificadas, governança robusta e métricas claras — é a alternativa mais eficaz para compatibilizar justiça social, previsibilidade regulatória e viabilidade econômico-financeira. Ao estruturar esse fundo, o país avança de forma consistente rumo à universalização do saneamento, com estabilidade para operadores, segurança para reguladores e proteção ao usuário mais vulnerável.
Fontes (links clicáveis)
- MP 1.300/2025 e nova Tarifa Social de Energia (gov.br)
- Gratuidade até 80 kWh e CDE (ANEEL)
- Lei 14.898/2024 – Tarifa Social de Água e Esgoto (Planalto)
- ANA – Perguntas frequentes sobre TSAE
- Trata Brasil – Investimentos em saneamento com recursos do FGTS
- IPEA – Debêntures e financiamento de infraestrutura
- Boletim do Saneamento – Investimentos e FINISA
- SciELO – Evidências de subsídio cruzado no saneamento
- Portal Água e Saneamento – Desafios da tarifa social



