Extravasamento de esgoto em dias de chuva é, quase sempre, resultado de responsabilidades compartilhadas. Logo de início, é essencial apontar os prováveis culpados: (1) ligações irregulares de calhas e áreas pluviais lançando água na rede de esgoto; (2) infiltração e entrada (I&I) por juntas, tampas de PV e ramais deteriorados; (3) capacidade insuficiente de coletores, elevatórias e emissários; e (4) drenagem urbana subdimensionada ou obstruída. Em cidades com sistemas combinados, soma-se a própria concepção que mistura chuva e esgoto, acionando extravasores. Portanto, a culpa não recai em um único ator: envolve prestadores do esgotamento sanitário, gestores municipais da drenagem e, inclusive, usuários que realizam conexões indevidas.
Marco legal e responsabilidades (Brasil)
No Brasil, água, esgoto, resíduos e drenagem compõem o saneamento básico. Em regra, a drenagem é responsabilidade municipal, enquanto o serviço de esgoto é prestado por companhias públicas ou privadas segundo contratos e metas. Ainda assim, por força do princípio da integralidade, o planejamento deve ser articulado: sem coordenação entre drenagem e redes de esgoto, multiplicam-se extravasamentos, danos ambientais e reclamações. Além disso, reguladores e contratos podem estabelecer metas específicas de redução de I&I e de ocorrências de retorno de esgoto durante eventos críticos de chuva, induzindo investimentos e rotinas operacionais mais robustas.
Por que o esgoto extravasa quando chove?
Embora as chuvas intensas criem o gatilho, quatro fatores técnicos explicam o problema no cotidiano:
- Conexões clandestinas: calhas, ralos e pátios conectados indevidamente à rede de esgoto sobrecarregam coletores e elevatórias.
- Inflow & Infiltration (I&I): juntas abertas, trincas, tampas vazadas e ramais mal executados permitem a entrada de água pluvial no esgoto.
- Capacidade insuficiente: trechos antigos, sem redundância ou subdimensionados, colapsam no pico de vazão, devolvendo esgoto às ruas.
- Drenagem deficiente: galerias assoreadas e bocas de lobo obstruídas impõem contrafluxos que acabam pressionando a rede de esgoto.
Em síntese, sem planejamento conjunto, qualquer melhoria isolada em drenagem ou esgoto pode apenas deslocar o problema de um ponto para outro.
Diagnóstico de campo que funciona
Para romper o ciclo, a operação bem-sucedida combina técnicas e dados. Em primeiro lugar, CCTV e varrição hidráulica identificam obstruções e colapsos na rede de esgoto. Em seguida, smoke testing (fumaça) e dye testing (corante) acham ligações cruzadas e pontos de I&I, inclusive nas interações com a drenagem. Além disso, o monitoramento contínuo de vazões, níveis e chuva (com análise de rácios entre tempo-seco e tempo-chuvoso) distingue sobrecargas estruturais de infiltrações difusas. Finalmente, planos de ação por bacia, com metas de I&I e priorização de ativos críticos (PVs baixos, travessias, coletores-tronco) aceleram o resultado.
Soluções que deram certo no Brasil
- São Paulo: combinação de reservatórios de detenção (“piscinões”), reforço de interceptores, requalificação de córregos e monitoramento de extravasores reduziu picos de carga lançada e diminuiu eventos de retorno de esgoto em chuvas intensas.
- Belo Horizonte (DRENURBS): integração entre drenagem, esgoto, recuperação de fundos de vale e parques lineares reduziu conexões indevidas e aumentou a resiliência hidrológica.
- Curitiba: jardins de chuva, dispositivos de infiltração e reservação distribuída em lote e via pública amorteceram picos de pluvial, aliviando a pressão sobre a rede de esgoto.
Soluções internacionais inspiradoras
- Copenhague (Cloudburst Plan): ruas, praças e parques foram redesenhados para conduzir e armazenar eventos extremos; com menos água chegando às galerias, reduziram-se descargas combinadas e extravasamentos de esgoto.
- Tóquio (G-Cans): gigantesco sistema subterrâneo de túneis e colunas armazena e desvia picos para rios maiores, protegendo coletores e emissários de esgoto contra refluxos.
- Londres (Tideway – “Super Sewer”): túnel intercepta dezenas de CSOs, armazena e envia o fluxo para tratamento, com meta de reduzir a quase totalidade de descargas combinadas de esgoto no Tâmisa durante tempestades.
- Filadélfia (Green City, Clean Waters): infraestrutura verde em larga escala (rain gardens, biorretenções, telhados verdes) remove bilhões de litros/ano da rede combinada, prevenindo extravasamentos de esgoto.
- Nova York (Bluebelt & GI): corredores naturais e bacias úmidas urbanas, somados a dispositivos verdes em ruas e calçadas, diminuem a descarga pluvial na rede e, por consequência, o retorno de esgoto.
- China (Cidades-Esponja): metas de pavimentos permeáveis, parques alagáveis e biorretenções para absorver grande parte da chuva anual; assim, menos água chega às galerias e menos esgoto extravasa.
O que aplicar agora (prático e escalável)
Curto prazo (operação e fiscalização): plano de caça a I&I com smoke/dye testing; selagem de tampas e juntas; inspeção de PVs; limpeza e desassoreamento de drenagem; comunicação massiva para desconectar calhas do esgoto; fiscalização com prazos e sanções. Médio prazo (engenharia e gestão): reservatórios modulares em bairros críticos; vias-canal; infraestrutura verde em massa; setorização e reforço de coletores e elevatórias de esgoto com redundância e automação; cadastro atualizado e modelagem hidráulica integrada drenagem–esgoto com telemetria. Estratégia e governança: planos municipais integrados, metas regulatórias de desempenho para I&I e para redução de extravasamentos de esgoto, e mecanismos de financiamento que priorizem soluções baseadas na natureza.
Conclusão
Em síntese, extravasamento de esgoto em dias de chuva nasce da soma de ligações irregulares, I&I, capacidade limitada e drenagem ineficiente. Contudo, quando drenagem e esgoto são planejados de forma integrada, com diagnóstico preciso, infraestrutura verde, reservatórios e reforços estratégicos, as ocorrências caem de maneira mensurável. Como demonstram casos brasileiros e internacionais, a solução exige ação coordenada, metas claras e monitoramento contínuo. Assim, o serviço melhora, a cidade ganha resiliência e o esgoto permanece onde deve estar: dentro do sistema, seguindo para tratamento adequado.
Fontes
- Lei n.º 11.445/2007 – Diretrizes nacionais de saneamento
- Lei n.º 14.026/2020 – Novo Marco Legal do Saneamento
- Sabesp – Monitoramento do Programa Córrego Limpo (Jan–Jun/2025)
- Prefeitura de SP – Despoluição de córregos e piscinões
- TCM-SP – Reservatórios de detenção (“piscinões”)
- SP Águas – Piscinões
- PBH – Programa DRENURBS
- Curitiba – Diretrizes para soluções de infiltração (1)
- Curitiba – Diretrizes para soluções de infiltração (2)
- Copenhagen – Cloudburst Management Plan
- Tóquio – G-Cans (visão geral)
- Londres – Tideway Super Sewer
- Filadélfia – Green City, Clean Waters
- NYC – Bluebelt Program
- NYC – Combined Sewer Overflows (CSO)
- Banco Mundial – Cidades-Esponja na China
- EPA – Sanitary Sewer Overflows (SSOs)
- EPA – Manutenção de coletores e elevatórias
- EPA – CMOM Guide for Collection Systems
- Massachusetts – Guidelines de I&I



