Saneamento inteligente: IA reduz extravasores no Reino Unido

O saneamento enfrenta um ponto de inflexão tecnológico. E, sobretudo, a combinação de sensores, modelos preditivos, automação e gêmeos digitais vem demonstrando, de forma prática, como reduzir extravasores por tempo de chuva sem obras gigantescas. Um novo projeto US-UK — envolvendo a consultoria norte-americana HydroDigital e a britânica Northumbrian Water — investe €23 milhões para maximizar a capacidade dos ativos subterrâneos e, assim, diminuir de maneira relevante a probabilidade de despejos durante eventos de tempestade. Como resultado, além de ampliar a resiliência operacional, a solução direciona investimentos onde o retorno é maior e, portanto, acelera benefícios ambientais e reputacionais para o saneamento.

A parceria, considerada a primeira do gênero no Reino Unido, estrutura uma malha de 75 sensores inteligentes e 35 pontos de controle distribuídos pela rede de esgoto na região de Tyneside. Em síntese, a plataforma antecipa quando e onde a chuva atingirá o sistema, estima os trechos próximos da capacidade e, consequentemente, recomenda manobras para redistribuir os escoamentos, evitando o transbordo. Além disso, um gêmeo digital do sistema, rodando à frente do tempo real, permite simular cenários, testar estratégias e operar com mais segurança. Dessa forma, o saneamento deixa de reagir ao evento e passa a prevenir o extravasor.

Embora pioneiro no Reino Unido, o conceito já foi comprovado nos Estados Unidos. Em South Bend (Indiana), a aplicação integrada de sensores, analytics e controle em tempo real reduziu em cerca de 80% o número de extravasores ao longo de uma década — e, ainda por cima, viabilizou economias de centenas de milhões de dólares em CAPEX ao substituir parte de obras por inteligência operacional. Isso demonstra, portanto, que o saneamento pode atingir metas ambientais com menos escavação e mais dados.

No projeto britânico, a metodologia de entrega também chama atenção. Em três fases, o time primeiro “acende as luzes”, coletando novos dados de campo para entender a dinâmica real da rede; depois, constrói e calibra o gêmeo digital combinando aprendizado de máquina com modelos baseados em física e, por fim, elabora estratégias de controle para diferentes padrões de chuva, executando-as com telemetria e atuadores em campo. Por conseguinte, a empresa aumenta a previsibilidade, reduz o risco de decisões às cegas e foca o investimento nas restrições que mais impactam o indicador de extravasores.

Esse movimento ocorre, ademais, num contexto regulatório cada vez mais rígido. No Reino Unido, a autoridade reguladora Ofwat intensificou sanções por falhas na gestão de esgotos e operação de extravasores, abrindo processos e aplicando penalidades relevantes a várias companhias. Logo, soluções que comprovem redução de impactos ambientais e melhoria de performance ganham prioridade estratégica e, assim, aceleração orçamentária. Para o saneamento, a mensagem é clara: dados e automação são, agora, instrumentos centrais de conformidade e de valor para o cliente.

O que muda na prática para o saneamento

1) Operação preventiva e manobras dinâmicas. Ao combinar previsão de chuva com níveis na rede, o centro de controle cria “janelas de oportunidade” para esvaziar trechos críticos e, assim, liberar volume antes do pico. Portanto, o saneamento ganha minutos preciosos para agir.

2) Gêmeos digitais úteis, não decorativos. Diferentemente de visualizações estáticas, o gêmeo digital executa simulações preditivas, testa políticas de controle e valida impactos antes da operação. Em outras palavras, auxilia o operador a decidir com base em cenários verificados. Casos reais em cidades dos EUA já demonstraram redução substancial de volumes de CSO e economia de CAPEX ao aplicar esse conceito.

3) CAPEX cirúrgico. Ao identificar gargalos reais — por exemplo, um interceptor subdimensionado ou uma elevatória com regime de operação inadequado — a companhia direciona obra e retrofit onde o ROI é maior, reduzindo retrabalho e, sobretudo, evitando investimentos “no escuro”.

4) Cultura data-driven. Ainda que a tecnologia seja essencial, a mudança de cultura é igualmente crítica: padronizar dados, garantir manutenção dos sensores, definir indicadores e criar rotinas de revisão após cada evento são passos que consolidam o ganho para o saneamento.

Indicadores-chave para priorização

  • Frequência e duração de extravasores por bacia ou distrito de esgoto.
  • Volume evitado (m³) por evento e por temporada chuvosa.
  • Tempo de antecedência médio entre alerta e pico (minutos úteis para manobra).
  • Disponibilidade da rede de sensores e taxa de dados válidos.
  • Custo evitado (CAPEX substituído por OPEX inteligente) por ano.
  • Queixas de odor/impacto e indicadores de qualidade de água no corpo receptor.

Roteiro de implementação em 6 passos

  1. Diagnóstico rápido (4–8 semanas). Inventariar sensores existentes, SCADA e modelos hidráulicos. Priorizar 2–3 sub-bacias críticas por histórico de extravasores.
  2. Plano de instrumentação. Definir pontos de nível/velocidade, pluviógrafos e atuadores (gates, válvulas, frequência de bombas).
  3. Gêmeo digital mínimo viável. Integrar modelos baseados em física com chuva prevista; calibrar com dados de campo.
  4. Regras de controle preditivo. Estabelecer políticas por tipo de evento (curto, longo, persistente), com limites de segurança e critérios de fallback.
  5. Sala de controle e rotina operacional. Procedimentos padronizados, alarmes priorizados e checklists de pós-evento.
  6. Ciclo de melhoria contínua. Auditoria de dados, atualização de parâmetros e reavaliação de hotspots para CAPEX cirúrgico.

Benefícios esperados para o saneamento

Primeiro, há redução direta de extravasores — tanto em frequência quanto em volume — com reflexos positivos na saúde pública, no turismo e na biodiversidade. Segundo, observa-se otimização de CAPEX, pois obras de grande porte podem ser postergadas, redimensionadas ou até substituídas por inteligência operacional, como já se evidenciou em casos norte-americanos de referência, com economias acima de US$ 400 milhões ao revisar planos tradicionais. Terceiro, há melhoria da transparência regulatória, uma vez que cada decisão fica respaldada por dados e por simulações auditáveis. Por fim, consolida-se uma relação de confiança com a sociedade, já que o saneamento demonstra ação proativa contra a poluição difusa associada à chuva.

Riscos e como mitigá-los

  • Qualidade e latência de dados. Sem manutenção de sensores, o gêmeo digital “envelhece” rapidamente. Mitigar com contratos de manutenção e SLAs de reposição.
  • Cibersegurança. A integração OT-TI exige segmentação de redes, autenticação forte e testes de intrusão periódicos.
  • Governança de modelo. Toda lógica de controle deve ter versão, dono, critérios de validação e trilha de auditoria.
  • Integração com manutenção. Insights precisam virar ordens de serviço, sob pena de a inteligência não sair do papel.

Por que isso importa ao saneamento no Brasil

Embora as realidades regulatórias sejam distintas, as dores são parecidas: eventos intensos de chuva, redes mistas antigas, bacias críticas e pressão por resultados ambientais. Assim, adotar pilotos de saneamento inteligente em capitais e regiões turísticas pode gerar vitórias rápidas — ainda mais quando integrados a programas de redução de infiltração, combate a ligações clandestinas e otimização de elevatórias. Além do mais, experiências internacionais mostram que operar preditivamente não é luxo, e sim uma forma eficiente de cumprir metas com menos tempo e menos obra pesada. E, conforme a regulação brasileira avança em metas e transparência, o saneamento que se antecipa com dados sai na frente.

Fontes (com links clicáveis)