Tratamento de água: cloro, dióxido de cloro e ozônio

Por que este debate importa

O coração do tratamento de água é a desinfecção. Embora o cloro permaneça dominante pela eficácia, pelo custo e pela facilidade de manter residual na rede, alternativas como o dióxido de cloro (ClO₂) e o ozônio (O₃) ganham espaço sempre que a formação de subprodutos da desinfecção (DBPs) pressiona a conformidade regulatória ou quando se exige maior ação sobre vírus e protozoários. Assim, discutir vantagens, limites e riscos desses três oxidantes é essencial para equipes que operam, projetam e fiscalizam sistemas de tratamento de água.

Marco regulatório e metas de qualidade

No Brasil, a Portaria GM/MS nº 888/2021 estabelece requisitos de potabilidade e a manutenção de desinfetante residual ao longo da distribuição. Dessa forma, o desenho operacional deve garantir segurança microbiológica até a ponta do consumidor. Em paralelo, e por analogia às melhores práticas internacionais, os controles de DBPs seguem abordagens como TTHM e HAA, frequentemente monitorados por média móvel locacional (LRAA) em pontos críticos da rede. Portanto, além de cumprir a norma nacional, é prudente alinhar procedimentos internos a padrões de amostragem e gestão de risco que reduzam DBPs sem comprometer o residual, sobretudo em arranjos complexos de tratamento de água.

Como cada desinfetante atua — e o que muda na operação

A efetividade depende do conceito de CT (concentração × tempo de contato) necessário para atingir determinada redução logarítmica de microrganismos. Em linhas gerais, quanto menor o CT exigido para um patógeno, mais “potente” é a opção, desde que temperatura e pH sejam respeitados. Guias técnicos apresentam tabelas de CT para vírus, Giardia e Cryptosporidium cobrindo cloro, dióxido de cloro e ozônio.

Entretanto, há implicações práticas: o ozônio não deixa residual na água distribuída. Logo, sempre que for adotado como desinfetante primário, torna-se indispensável uma desinfecção secundária (geralmente cloro ou cloramina) para proteger a qualidade até a ponta. Por isso, muitas arquiteturas de tratamento de água combinam ozônio como pré-oxidação, seguido de filtração (idealmente com carvão ativado granular biológico) e, então, cloração de acabamento.

Cloro: simplicidade, residual e atenção aos DBPs

No tratamento de água, o cloro segue imbatível por custo, robustez operacional e manutenção de residual. Em estações bem projetadas, com pH controlado e baixas turbidez e matéria orgânica natural (NOM), o cloro entrega segurança com previsibilidade. Contudo, em águas ricas em precursores orgânicos, a cloração pode formar TTHM e HAA, pressionando o cumprimento de limites e exigindo medidas como redução de NOM por coagulação/filtração mais eficientes, carvão ativado e, em alguns casos, cloramina no pós-tratamento.

Operacionalmente, a força do cloro é o residual: atingir e manter valores mínimos nas extremidades da distribuição é mais direto com cloro livre ou cloraminas, o que facilita instrumentação online e resposta a eventos. Ainda assim, por formar DBPs, o cloro pede vigilância sobre pH (idealmente menor que 7,5) e zonas de estagnação, além de estratégias de reforço de cloro (booster chlorination) para reduzir doses de ataque na saída da ETA e, consequentemente, a formação de subprodutos. Em síntese, com boa engenharia de processo, o cloro sustenta a espinha dorsal do tratamento de água.

Dióxido de cloro (ClO₂): ampla eficácia e DBPs específicos

O dióxido de cloro apresenta cinética distinta do cloro, com boa efetividade contra vírus e bactérias e desempenho estável em ampla faixa de pH. Por não formar TTHM/HAA em níveis relevantes, é alternativa interessante quando a NOM é elevada e a formação de DBPs clássicos ameaça a conformidade. Todavia, seu uso exige rigor no controle de clorito e clorato, subprodutos característicos com valores-guia reconhecidos internacionalmente. Portanto, sempre que o ClO₂ for aplicado como desinfetante primário ou pré-oxidante, deve-se institucionalizar rotina analítica para esses íons, integrando-a aos planos de amostragem do tratamento de água.

Na prática, o dióxido de cloro é, quase sempre, gerado in situ a partir de clorito de sódio e um oxidante (ou ácido), em geradores projetados para maximizar rendimento e segurança. Esse arranjo evita o transporte de grandes volumes do agente ativo, mas exige operadores treinados, controle de reagentes e dispositivos de segurança (intertravamentos, exaustão e sensores). Em suma, é uma solução com alta eficiência para certos cenários de tratamento de água, desde que a gestão de risco seja madura.

Ozônio (O₃): potência, oxidação avançada e atenção ao bromato

O ozônio se destaca por CTs baixos para protozoários e vírus e por oxidar compostos orgânicos recalcitrantes, incluindo pesticidas e precursores de gosto e odor. Assim, quando aplicado como pré-ozonização, tende a melhorar a tratabilidade, reduzir micropoluentes e elevar a biodegradabilidade da matéria orgânica (o que favorece filtros de carvão ativado com biofilme). Apesar dessas vantagens, o ozônio apresenta dois desafios clássicos: não mantém residual e pode formar bromato em águas com brometo, especialmente com pH e temperatura elevados e dosagens altas. Por consequência, sempre que a ozonização fizer parte do tratamento de água, torna-se essencial um plano de mitigação de bromato, com controle de pH, dosagem fracionada e, quando pertinente, combinações de processo.

Finalmente, vale lembrar que o sistema de ozônio envolve CAPEX e OPEX mais elevados (geradores, oxigênio, contatores, destruição de off-gas), consumo relevante de energia e equipe com perfil técnico especializado. Mesmo assim, quando o objetivo é reduzir micropoluentes e aprimorar barreiras múltiplas, ele se torna extremamente competitivo no ecossistema do tratamento de água.

Comparativo técnico resumido

  • CloroPontos fortes: residual na rede; custo menor; instrumentação difundida; resposta rápida. Cuidados: TTHM/HAA sob NOM elevada; pH influencia eficácia; atenção a zonas mortas e tempos de contato.
  • Dióxido de cloro (ClO₂)Pontos fortes: desempenho estável em faixa ampla de pH; baixa formação de TTHM/HAA; ação sobre biofilmes iniciais. Cuidados: controle de clorito/clorato; geração in situ com requisitos de segurança; planejamento de residual compatível com a distribuição.
  • Ozônio (O₃)Pontos fortes: CT baixo para protozoários; oxida micropoluentes e precursores de gosto/odor; melhora filtrabilidade. Cuidados: ausência de residual; risco de bromato; CAPEX/OPEX e qualificação operacional mais exigentes.

Implicações práticas para projeto e operação

Do ponto de vista de engenharia, o tratamento de água deve integrar a desinfecção ao restante da cadeia de barreiras múltiplas. Para evitar surpresas, algumas diretrizes ajudam bastante:

  1. Diagnosticar a água bruta: mapear NOM, brometo, amônia, ferro/manganês, pH e temperatura sazonais. Onde houver brometo relevante, a ozonização exigirá plano de mitigação; onde a NOM for elevada, a cloração pode pressionar TTHM/HAA, cenário em que ClO₂ ou pré-ozônio + GAC podem reduzir precursores antes da cloração final no tratamento de água.
  2. Dimensionar o tempo de contato por CT: verificar metas de inativação para vírus, Giardia e Cryptosporidium com base em tabelas CT, ajustando volumes, geometrias e pontos de dosagem; lembrar que temperatura e pH alteram o CT.
  3. Planejar residual e rede: como a norma exige residual ao longo da distribuição, prever reforços (booster) em áreas de baixa renovação. Em esquemas com ozônio ou ClO₂ na etapa primária, planejar a cloração de acabamento para assegurar o residual no tratamento de água.
  4. Controlar DBPs na fonte: para TTHM/HAA, atacar precursores na ETA, otimizar pH, mistura e tempos de detenção; para clorito/clorato, acompanhar o desempenho do gerador de ClO₂ e a qualidade dos reagentes; para bromato, ajustar pH/dose e explorar fracionamento da ozonização.
  5. Instrumentação e qualidade analítica: analisadores online de residual, ORP e pH ajudam; porém, métodos laboratoriais confiáveis para TTHM/HAA, clorito/clorato e bromato são indispensáveis para um tratamento de água consistente.

Custos, segurança e pessoas

Em geral, o tratamento de água com cloro apresenta menor CAPEX e OPEX. No entanto, a conta total depende de metas de DBPs, de eventuais penalidades e do custo reputacional de descumprimentos. Já o ozônio costuma exigir investimento maior e qualificação técnica extensa. Por sua vez, o ClO₂ demanda logística de reagentes, geradores in situ e protocolos de segurança para clorito/ácidos/oxidantes, além de capacitação específica. Em todos os casos, cultura de segurança de processo e treinamento recorrente determinam o desempenho sustentável do tratamento de água.

Quando escolher cada um — decisões orientadas por risco

Para sistemas que precisam, sobretudo, de simplicidade operacional e residual estável, o cloro tende a ser a primeira escolha no tratamento de água. Quando a pressão por TTHM/HAA é alta, o dióxido de cloro reduz significativamente esses DBPs sem perder eficiência microbiológica — desde que haja monitoramento sistemático de clorito e clorato. Por sua vez, quando se exige oxidação avançada e melhoria de tratabilidade (remoção de gosto/odor e micropoluentes), o ozônio se torna bastante atrativo, ainda que a gestão do risco de bromato seja mandatória e o residual precise ser garantido com cloro ou cloramina.

Na prática, muitas companhias convergem para arranjos híbridos: por exemplo, pré-ozônio + filtração biológica em GAC + cloração final, ou ainda pré-ClO₂ + filtração + cloração de acabamento. Tais arquiteturas equilibram qualidade sensorial, segurança microbiológica e conformidade com DBPs, viabilizando um tratamento de água mais resiliente a sazonalidades.

Indicadores de desempenho e conformidade

  • Residual na ponta: manutenção de desinfetante residual conforme a Portaria GM/MS nº 888/2021 ao longo do sistema de distribuição.
  • TTHM e HAA: metas internas para manter LRAA abaixo dos limites, com foco em pontos críticos da rede.
  • Clorito e clorato: rastreamento rotineiro quando houver ClO₂ no tratamento de água.
  • Bromato: monitoramento intensificado sempre que se usar ozônio em águas com brometo, com planos de controle de pH, dose e estágios.
  • CT efetivo: verificação periódica de volumes, tempos de detenção, temperatura e pH para garantir as reduções alvo de vírus e protozoários.

Checklist de decisão para equipes

  1. Diagnosticar a água bruta (NOM, brometo, amônia, ferro/manganês, pH e temperatura).
  2. Estabelecer metas de DBPs e limites internos de alerta (TTHM/HAA, clorito/clorato, bromato).
  3. Simular CT e hidráulica no contato/distribuição, considerando variações sazonais.
  4. Definir estratégia de residual e pontos de reforço na rede.
  5. Selecionar o oxidante primário (cloro, ClO₂, ozônio) conforme o risco dominante do tratamento de água.
  6. Planejar mitigação de DBPs críticos (pH, dosagem em estágios, GAC/biolfiltração).
  7. Especificar instrumentação e QA/QC laboratorial para DBPs e residual.
  8. Treinar a equipe e padronizar segurança de processo (procedimentos, EPI, intertravamentos).
  9. Acompanhar LRAA e indicadores de rede com foco em pontos problemáticos.
  10. Revisar periodicamente o arranjo do tratamento de água à luz de auditorias e novas evidências.

Fontes (com links clicáveis)