O saneamento — entendido como o conjunto dos serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem urbana e manejo de águas pluviais e resíduos sólidos — é essencial para a saúde pública, a qualidade de vida e a inclusão social. No entanto, nas favelas do Rio de Janeiro, o saneamento enfrenta obstáculos singulares: ocupações informais, topografia irregular, falta de infraestrutura e a presença de facções ou milícias que controlam o território. Para os profissionais do saneamento, compreender essas dinâmicas é fundamental para planejar ações seguras, sustentáveis e socialmente eficazes.
Panorama técnico do saneamento no Rio de Janeiro
O estado do Rio de Janeiro ainda possui déficits expressivos nos serviços de saneamento. Em 2024, cerca de 84,38% das moradias tinham cobertura de rede de esgoto e 84,72% contavam com abastecimento de água. Isso revela que mais de 15% da população permanece sem acesso adequado aos serviços básicos.
Segundo o Instituto Trata Brasil, o Rio de Janeiro figura entre os estados com maiores índices de perdas de água. O município apresentou média de 40,99% em 2019, e estudos apontam perdas superiores a 60% em alguns trechos da capital. Tais perdas reduzem a eficiência operacional, comprometem o abastecimento e afetam diretamente a sustentabilidade financeira das empresas de saneamento.
No esgotamento sanitário, a cobertura estadual gira em torno de 66,87%, com coleta e tratamento muito inferiores nas áreas periféricas e favelas. Isso demonstra que, além de infraestrutura insuficiente, existe uma forte desigualdade territorial na distribuição dos serviços de saneamento.
O saneamento nas favelas sob domínio de facções e milícias
1. Irregularidade fundiária e urbanização precária
Grande parte das favelas foi construída sem planejamento urbano. As ocupações ocorreram em encostas e áreas de risco, dificultando a instalação de redes de abastecimento e esgoto. A falta de regularização fundiária também impede investimentos estruturais, pois o poder público e as concessionárias enfrentam entraves legais e logísticos para implantar o saneamento em larga escala.
2. Acesso deficitário e intermitência
Mesmo quando há rede instalada, o fornecimento de água é irregular. Em regiões como o Complexo da Maré e o Alemão, moradores relatam passar dias sem abastecimento, o que os obriga a armazenar água em condições precárias. Essa situação favorece contaminações e agrava doenças de veiculação hídrica. Já no esgoto, é comum o uso de valetas, fossas improvisadas e tubulações clandestinas, resultando em esgoto a céu aberto e contaminação dos córregos urbanos.
3. Perdas e ligações clandestinas
Nas favelas, as perdas de água são ainda mais elevadas devido à falta de medição individual. O índice de hidrometração do Rio era de apenas 53,23% em 2019. Isso significa que metade das ligações não tem medidor, tornando impossível calcular o consumo real e identificar vazamentos ou fraudes. Em comunidades dominadas por facções, ligações clandestinas são comuns, muitas vezes instaladas sem padrão técnico, provocando vazamentos e contaminações cruzadas.
4. Governança informal e controle territorial
Em áreas controladas por facções criminosas ou milícias, o saneamento passa a ser um componente da disputa pelo poder local. Grupos armados podem cobrar taxas informais pelo acesso à água, interferir em obras e restringir o trabalho das equipes de manutenção. O poder público tem atuação limitada, o que agrava a precariedade dos serviços e perpetua a dependência da população em relação a esses grupos.
5. Impactos sanitários e ambientais
A deficiência do saneamento tem consequências diretas para a saúde e o meio ambiente. O esgoto a céu aberto contamina o solo e os lençóis freáticos, enquanto a falta de drenagem adequada causa alagamentos e deslizamentos. Em períodos chuvosos, os riscos de leptospirose, hepatite e infecções intestinais aumentam exponencialmente. Essa realidade reforça a importância de integrar o saneamento à política pública de saúde e urbanização.
Desafios para os profissionais do saneamento
Atuar em favelas sob domínio de facções exige não apenas conhecimento técnico, mas também sensibilidade social e estratégias de segurança. As principais dificuldades operacionais incluem:
- Acesso restrito: ruas estreitas e tiroteios constantes dificultam o trabalho das equipes;
- Custo elevado: as soluções precisam ser adaptadas, como microestações e redes elevadas;
- Risco à segurança: equipes precisam atuar com protocolos especiais e apoio comunitário;
- Faturamento precário: a ausência de cadastros e medições formais reduz a arrecadação e desestimula investimentos;
- Perdas elevadas: a ausência de controle efetivo aumenta desperdícios e contaminações;
- Governança fragmentada: o diálogo institucional precisa incluir lideranças locais e agentes comunitários.
Boas práticas e soluções possíveis
1. Planejamento territorial integrado
Antes de qualquer obra, é essencial mapear as condições reais do território, identificar redes existentes, perdas, vazamentos e áreas de risco. O uso de georreferenciamento, drones e sensores de pressão pode auxiliar o diagnóstico técnico, aumentando a precisão e reduzindo custos.
2. Soluções técnicas adaptadas
O saneamento em favelas requer soluções modulares: microestações de tratamento, redes suspensas, reservatórios comunitários e sistemas pressurizados locais. Essas tecnologias reduzem o impacto das obras e permitem atender becos e áreas íngremes onde a infraestrutura convencional não chega.
3. Participação comunitária
O envolvimento da população é decisivo. A colaboração com associações de moradores, ONGs e coletivos locais reduz o risco de sabotagem e aumenta a adesão aos serviços. Campanhas educativas sobre o uso racional da água e o descarte adequado de resíduos fortalecem o sentimento de pertencimento e proteção da rede de saneamento.
4. Integração entre saneamento, segurança e urbanização
O avanço do saneamento deve ocorrer junto a políticas de segurança pública, habitação e regularização fundiária. A presença do Estado com serviços básicos reduz o poder das facções e fortalece o controle institucional do território.
5. Monitoramento de perdas e eficiência operacional
Implantar sistemas de telemetria e medição coletiva em favelas é uma alternativa viável. Sensores inteligentes ajudam a detectar vazamentos, controlar pressão e reduzir perdas. Essas tecnologias tornam o saneamento mais eficiente mesmo em áreas de difícil acesso.
6. Modelos tarifários inclusivos
A adoção de tarifas sociais e subsídios cruzados é indispensável para garantir o direito ao saneamento nas favelas. O modelo deve equilibrar sustentabilidade econômica e justiça social, evitando que a população mais pobre seja excluída por incapacidade de pagamento.
Considerações finais
O saneamento nas favelas do Rio de Janeiro vai além da engenharia — é uma questão de cidadania e segurança pública. Em territórios dominados por facções e milícias, a ausência do Estado se manifesta também pela precariedade das redes de água e esgoto. A universalização do saneamento, prevista no novo marco legal, só será alcançada se houver políticas específicas para áreas de vulnerabilidade extrema.
Reduzir as perdas de água, ampliar a cobertura de esgoto e adotar soluções adaptadas são medidas indispensáveis. O profissional do saneamento precisa enxergar essas comunidades como parte integrante da cidade e atuar com empatia, técnica e coragem. Garantir saneamento é garantir dignidade — e dignidade é o primeiro passo para quebrar o ciclo da violência e da exclusão.
Fontes
- Agência Brasil – Falta de saneamento em favelas confirma racismo ambiental
- Trata Brasil – Perdas de água na região Sudeste
- Rede da Maré – Acesso à água: um problema antigo para moradores de favelas
- Voz das Comunidades – Acesso à água nas favelas do Rio
- UERJ – Saneamento e favela: marcas da desigualdade espacial
- Prefeitura do Rio – Plano Municipal de Saneamento Básico
- Nexo Jornal – Concessão pública ou privada do saneamento



