Por que sem planejamento a drenagem urbana não avança no Brasil

Se você trabalha com saneamento, já percebeu: a conversa dominante em drenagem urbana hoje é a urgência de ampliar o investimento e tirar do papel o planejamento municipal. Os números mais recentes cravam o diagnóstico — e apontam caminhos claros para quem quer destravar obras, acessar recursos e reduzir risco de alagamentos já no curto prazo. 

O retrato nacional que ninguém pode ignorar

Os dados consolidados do SINISA (ano-base 2023) mostram um quadro de subatendimento e baixa maturidade de gestão:

  • 32,5% dos municípios que responderam ao módulo de águas pluviais não têm nenhum sistema de drenagem. Entre os que têm, 40,44% operam sistema exclusivo pluvial, 12,59% sistema unitário (esgoto + pluvial) e 14,48% sistemas combinados. Só 3,2% (157 municípios) declararam possuir tratamento de águas pluviais. 
  • Em infraestrutura, 78,2% das vias urbanas têm pavimentação/meio-fio, mas apenas 33,5% contam com redes/canais pluviais subterrâneos. Parques lineares existem em 412 municípios, cobrindo só 3,83% da extensão de cursos d’água urbanos. 
  • Em planejamento, o Brasil tem só 263 PDDs (Planos Diretores de Drenagem e Manejo de Águas Pluviais), 5,3% do total de cidades; ou seja, 94,7% ainda sem PDD — o instrumento básico para mapear riscos, priorizar bacias e orientar obras. 

No bolso, a conta não fecha: a média de 2017–2023 foi ~R$ 10 bilhões/ano em drenagem, mas a necessidade calculada para 2024–2033 é R$ 22,3 bilhões/ano (R$ 117/hab/ano). É praticamente dobrar o ritmo atual para alcançar a universalização. 

Onde o problema é maior (e onde há sinais de avanço)

O recorte regional escancara a desigualdade no planejamento:

  • Sudeste concentra 181 dos 263 PDDs existentes — reflexo de capacidade técnica e financiamento locais, além de histórico de macrodrenagem em capitais e RM. 
  • Sul tem 39 PDDs; Centro-Oeste, 14; Nordeste, 20; Norte, 9. É nas duas últimas macrorregiões que o vazio de planejamento é mais crítico, com impacto direto na elegibilidade e priorização de projetos. 
  • Em soluções baseadas na natureza, a presença de parques lineares ainda é tímida em todas as regiões (proporções baixas por macrorregião), apesar de seu papel em amortecer cheias e requalificar fundos de vale. 

Além disso, levantamentos de imprensa e estudos setoriais indicam que quase 1/3 das cidades relatam inexistência de sistema pluvial — um indicador que conversa com a estatística técnica do SINISA. 

Oportunidades de financiamento agora

O Novo PAC – Prevenção a Desastres: Drenagem Urbana está aberto/rodando e virou a principal porta de entrada para macrodrenagem sustentável nas cidades críticas:

  • 1ª etapa: R$ 4,8 bilhões (OGU + financiamento FGTS). 2ª etapa: R$ 5,5 bilhões (R$ 3 bi financiamento + R$ 2,5 bi OGU). Pautas elegíveis priorizam redução de risco e Soluções Baseadas na Natureza (SbN); microdrenagem/pavimentação isolada não se enquadra. 
  • Há listas de municípios elegíveis e regras específicas; quem está em áreas de risco hidrológico ganha prioridade. 
  • O Ministério das Cidades prorrogou prazos e orientou ajustes via Transferegov — janela valiosa para qualificar propostas. 

Quem está se destacando — e como conseguiu recurso

  • Recife (PE): selecionada pelo Ministério das Cidades para 3 obras de macrodrenagem (canais Sambra e Guarulhos), R$ 93,7 milhões via Novo PAC. Exemplo de PDD ativo + carteira executiva pronta = projeto elegível e financiável. 
  • São Paulo (SP): avanço contínuo em piscinões e atualização do Plano Diretor de Drenagem com 97 obras estruturantes (estimados R$ 8,7 bilhões) — combinando OGU, FGTS/CAIXA e orçamento municipal. Além disso, novos reservatórios vêm sendo contratados (R$ 166,6 milhões em um único piscinão na Zona Leste). 
  • Curitiba (PR): estratégia consistente de parques lineares e intervenções de macrodrenagem; novos aportes municipais (ex.: R$ 8 milhões em parque linear com função de amortecimento). 
  • Belo Horizonte (MG): o DRENURBS virou referência ao misturar recursos municipais com financiamento internacional (BID) para recuperar fundos de vale, implantar parques lineares e resolver pontos de inundação. A lógica de bacia e o mix de fontes foram determinantes. 
  • Amapá (AP): R$ 410 milhões para macrodrenagem em Macapá e Santana (canais Jandiá e Paraíso) no guarda-chuva do Novo PAC — bom exemplo de estados do Norte capilarizando seleção e estruturação. 
  • Bahia (BA): 100% dos municípios enviaram propostas ao Novo PAC Seleções 2025; o estado iniciou execução em frentes como drenagem urbana — governança e coordenação estadual aceleram captação e início de obras. 

Como ficar elegível e competitivo (sem travar no “papel”)

O que diferencia as cidades que “levam o cheque” das que ficam na fila? Três fatores práticos, à luz das regras federais e da experiência recente:

  1. Planejamento vivo: PDD/PMSB integrados, com diagnóstico por bacia, mapa de riscos e carteira priorizada (fases, custos, benefícios). Sem isso, propostas caem na classificação técnica. 
  2. Projeto executivo e SbN: Estudos de concepção + anteprojeto/executivo favorecem a seleção; soluções como parques lineares, reservatórios de detenção, pavimentos permeáveis e renaturalização de fundos de vale pesam positivamente. 
  3. Mix de fontes: combine OGU + financiamento FGTS (via CAIXA), orçamento municipal/estadual, e, quando fizer sentido, multilaterais (BID, CAF) — foi assim que BH escalou o DRENURBS; Porto Alegre e outras capitais têm usado linhas CAIXA/FN para infraestrutura. 

O Brasil não resolverá alagamentos só com “obra de emergência”. Precisamos planejar por bacia, dobrar o investimento anual e qualificar projetos com foco em risco e desempenho ambiental. As cidades que já estão colhendo resultados aparecem nas seleções do Novo PAC porque alinharam PDD + projeto + funding. O recado é simples: quem planeja bem, capta mais — e entrega antes.