10 Verdades sobre Saneamento e COP 30

Belém, COP 30 e o choque dos números

A escolha de Belém (PA) como sede da COP 30 expõe, de forma contundente, a contradição entre discurso e realidade do saneamento no Brasil. Enquanto o mundo discute clima, adaptação e justiça socioambiental, o indicador local de cobertura de esgoto segue em patamar crítico: aproximadamente 19,9% da população de Belém estaria ligada à rede de coleta, ao passo que o abastecimento de água supera 90%. Quando confrontado com a meta nacional de saneamento (99% de água e 90% de esgotos até 2033), o contraste é inevitável. Portanto, é legítimo — e técnico — perguntar: como a COP 30 acontece em uma capital com índice de esgoto tão baixo? E, ainda mais importante, o evento será um gatilho de transformação estrutural do saneamento ou apenas um palco de obras-vitrine?

Para profissionais do setor, a provocação é útil porque reorganiza prioridades. Afinal, se o saneamento é pilar de saúde pública, de produtividade urbana e de adaptação climática, então a agenda da COP 30 precisa ser mais do que slogans. Precisa multiplicar ligações, ampliar redes, garantir operação e manutenção, elevar eficiência energética, mudar o perfil de investimentos e, sobretudo, reduzir desigualdades regionais que hoje travam a universalização do saneamento.

Brasil em marcha lenta: o pano de fundo do saneamento

Em escala nacional, a fotografia é conhecida, mas segue incômoda. A cobertura de água beira meados da casa dos 80%, enquanto a coleta de esgoto avança lentamente, pouco acima de 56% em médias recentes. Em capitais e grandes municípios, observa-se desempenho melhor na água, porém a coleta e o tratamento de esgoto ainda oscilam perto de 77% e 65%, respectivamente. Em regiões como o Norte, a defasagem é persistente: alguns recortes mostram a coleta de esgoto ainda abaixo de 30%, o que reitera o desafio de integrar expansão de infraestrutura, sustentabilidade financeira e capacidade operacional — uma tríade que, quando falha, perpetua o atraso do saneamento.

Por isso, à sombra da COP 30, a pergunta pragmática passa a ser: a agenda climática consegue acelerar saneamento?
Consegue, simultaneamente, atrair financiamento, padronizar critérios de elegibilidade, exigências de medição de resultado e, sobretudo, distribuir recursos para onde o déficit é maior? Se a resposta for “sim”, a COP 30 pode ser um marco. Caso contrário, o risco é apenas colorir relatórios com promessas, sem alterar curvas reais de cobertura e qualidade do saneamento.

1) Discrepância entre evento climático e realidade do saneamento

Sediar a COP 30 em uma cidade com menos de 20% de coleta de esgoto é um choque de realidade. Do ponto de vista técnico, a discrepância reforça o que engenheiros e gestores conhecem bem: sem continuidade de investimento, sem modelos contratuais robustos e sem operação eficiente, não há salto de saneamento. A pressão reputacional pode ser salutar — medições públicas, auditorias independentes, metas verificáveis — mas o impulso só se transforma em legado se o ciclo completo (projeto, obra, ligação, operação e manutenção) for financiado e gerido com rigor. Ainda mais porque saneamento é serviço, não apenas obra.

2) Saneamento como infraestrutura de adaptação climática

A COP 30 insere o saneamento no coração da agenda de adaptação. Redes de esgoto resilientes, drenagem urbana baseada em natureza, macrodrenagem integrada com microdrenagem, controle de cheias e praias fluviais balneáveis são elementos que se misturam com saúde, economia e clima. Na prática, isso exige que as companhias de saneamento e as prefeituras revisem critérios de projeto: cotas de alagamento no dimensionamento, retorno de cheias com períodos de recorrência atualizados, margens de segurança hidráulica, interceptores dimensionados para eventos extremos, e eficiência energética de ETEs. Saneamento passa a ser barreira física e operacional contra riscos climáticos que
custam caro à sociedade.

3) Financiamento climático: oportunidade real, risco concreto

As discussões de financiamento vinculadas à COP 30 falam em trilhões de dólares globalmente até 2030. Na prática municipal, porém, o desafio é traduzir isso em projetos bancáveis de saneamento, com cash flow claro, indicadores de desempenho (cobertura, remoção de carga orgânica, horas de bomba em operação, perdas de água,
energia por metro cúbico bombeado), lastro regulatório e governança. O risco é que recursos “verdes” se concentrem em corredores mais visíveis, deixando para trás cidades médias e pequenas — justamente onde o saneamento mais precisa acelerar. A solução passa por carteiras de projetos regionais, padronização de documentação e metas contratuais que amarram desembolsos a entregas verificáveis.

4) Obras-vitrine x impacto estrutural para o saneamento

A tentação de priorizar ribbons cuttings é grande. Mas a métrica que importa no saneamento não é foto, é curva: quantas novas ligações por mês? Quantos quilômetros de rede efetivamente integrados a ETEs operantes? Qual a remoção de DBO? Qual a redução de internações por diarreia nas áreas atendidas? Sem esses números, “obra” vira marketing.
Para evitar esse desvio, contratos podem atrelar medições de saneamento a gatilhos de pagamento: por exemplo, percentual de rede comissionada, número de economias ativas, eficiência de remoção >85%, energia específica (kWh/m³) abaixo de patamares definidos e uptime de estações acima de 98%.

5) Regiões vulneráveis: onde o déficit de saneamento é maior

No recorte regional, a prioridade técnica é óbvia: Norte e Nordeste concentram as piores coberturas de esgoto. Porém, são justamente essas regiões que, com frequência, enfrentam maior restrição fiscal, menor base tarifária e desafios logísticos que elevam o CAPEX. Em saneamento, equidade exige critério: fundos de universalização com foco em déficits, modelagens consorciadas para ganho de escala, compras públicas regionais para baixar custo unitário de tubulações, elevatórias e equipamentos, além de padronização de ETEs com packages modulares e reatores de baixa
complexidade operacional. Quanto mais modular e replicável, maior a chance de acelerar o saneamento onde ele mais
falta.

6) Quem captura valor no “saneamento-COP”?

Grandes carteiras de investimentos atraem construtoras, fabricantes, operadores e financiadores. Isso é saudável, pois
o saneamento precisa de indústria forte. Entretanto, a captura de valor precisa se refletir no usuário final: tarifas adequadas à capacidade de pagamento, subsídios cruzados explícitos, KPIs de prestação fixados em contrato e penalidades por não conformidade. Para evitar “lucro sem entrega”, a regulação deve amarrar retorno a desempenho de saneamento (cobertura, qualidade e continuidade), além de exigir transparência de custos e auditorias periódicas.

7) Legado: efêmero ou sustentável?

O teste do legado não é a inauguração, é o pós-obra. A experiência brasileira demonstra que ETEs podem virar “elefantes brancos” quando não há orçamento para operação, equipe treinada e manutenção preventiva. O legado da COP 30 para o saneamento deve ser medido, por exemplo, por: (i) de quanto cresceu a cobertura de esgoto efetivamente
conectada; (ii) qual a taxa de remoção média atingida nas novas ETEs; (iii) quantas internações por doenças hídricas foram evitadas; (iv) quanto de carga orgânica deixou de ser lançada; (v) quanto de emissão de GEE foi reduzido com aproveitamento de biogás. Sem essas respostas, a COP 30 terá sido um evento, não uma virada.

8) Saneamento, meio ambiente e contradições urbanas

A Amazônia pede coerência. Intervenções urbanas precisam proteger corpos d’água, manejar águas pluviais com soluções
baseadas na natureza e evitar deslocamento de vulnerabilidades. Para equipes técnicas de saneamento, isso implica diagnósticos de hotspots de poluição, interceptação de contribuições indevidas na drenagem, controle de ligações clandestinas, e programas de educação sanitária. Ao mesmo tempo, é crucial integrar licenciamento ambiental, plano diretor, outorgas de lançamento e metas de qualidade em mananciais. Saneamento eficiente preserva biodiversidade e turismo, reduz custos de tratamento de água e melhora a resiliência urbana a extremos climáticos.

9) Universalização até 2033: alvo técnico sob pressão

As metas legais (99% de água, 90% de esgoto) definem um alvo claro. Contudo, manter o ritmo atual não basta. Para atingir 90% de coleta e tratamento até 2033, será indispensável elevar a taxa anual de novas ligações, acelerar obras prioritárias, cortar tempos de licitação e de licenciamento, e aumentar a produtividade por equipe. No plano operacional, o saneamento precisa atacar perdas de água (que drenam caixa), reduzir energia específica em sistemas
de bombeamento, otimizar grades e flotadores em ETEs para estabilidade e, de forma transversal, profissionalizar a
manutenção. A pergunta-chave é simples: quantos pontos percentuais de cobertura se pretende adicionar por ano, por município? Sem metas anualizadas, a universalização vira miragem.

10) Métricas que importam: do KPI à fatura do usuário

Para que a COP 30 deixe legado mensurável ao saneamento, gestores podem pactuar um pacote mínimo de métricas: cobertura de esgoto (economias ativas), tratamento efetivo (percentual de esgoto coletado que chega à ETE), remoção de DBO (>85% na média trimestral), carga removida (kg DBO/dia), interrupções (nº e duração), energia específica (kWh/m³), emissões evitadas (biogás aproveitado), prazo de ligação (dias entre cadastro e ativação), resolução de extravasamentos (SLA), satisfação do usuário (% de NPS ou índice equivalente). Essas métricas conectam obra, operação e impacto percebido na fatura e na saúde pública, traduzindo o que realmente é
saneamento de qualidade.

Dados técnicos de referência para embasar a reflexão

  • Belém (PA): cobertura de coleta de esgoto ~19,9%; abastecimento de água > 90%.
  • Brasil (panorama recente): água ~83–85%; coleta de esgoto ~56%; tratamento efetivo ~52–65% (variando por recorte).
  • Grandes municípios: água ~94%; coleta ~77%; tratamento ~65% (ordem de grandeza).
  • Região Norte: coleta de esgoto frequentemente < 30% em recortes estatísticos recentes.
  • Metas legais (2033): 99% água; 90% esgoto (coleta e tratamento com performance).

Plano de ataque: como converter COP 30 em avanço mensurável

Para transformar a visibilidade da COP 30 em ganho real de saneamento, é necessário articular um plano tático
com entregas em 12–24 meses:

  1. Carteiras priorizadas por déficit: selecionar bacias com maior impacto sanitário e ambiental (pior índice de
    saneamento), com quick wins de ligações domiciliares e interceptores estratégicos.
  2. Padronização de ETEs modulares: adotar linhas de tratamento replicáveis (lodos ativados por batelada, reatores
    anaeróbios seguidos de polimento) com especificações “catálogo” para compras mais ágeis.
  3. Contratos orientados a desempenho: pagamentos atrelados a economia ativa, remoção de DBO, uptime de elevatórias
    e metas de eficiência energética.
  4. Integração drenagem–esgoto: programas de desconexão de pluviais da rede de esgoto, combate a ligações indevidas e
    reabilitação de coletores com no-dig.
  5. Gestão operacional enxuta: telemetria de bombas, manutenção preditiva, estoque crítico de sobressalentes e
    treinamento contínuo para reduzir OPEX e elevar confiabilidade.
  6. Tarifa social e política pública: assegurar acessibilidade econômica sem colapsar caixa; combinar subsídios
    explícitos e fundos setoriais.
  7. Transparência: dashboards públicos com KPIs de saneamento, auditoria independente e participação social
    nas prioridades de investimento.

Impacto transversal: por que o saneamento paga a conta

Cada real investido em saneamento retorna múltiplos em saúde (menos internações por diarreia e leptospirose), produtividade (menos dias perdidos), turismo (balneabilidade), valorização imobiliária (infraestrutura urbana confiável) e clima (menor emissão líquida com aproveitamento energético do lodo). Quando a rede coleta e a ETE trata com eficiência >85% de DBO, há redução direta de carga poluidora e, por consequência, de custos no tratamento de água a jusante. Em síntese, saneamento é investimento com payback social alto e externalidades positivas, sobretudo em cidades amazônicas, onde o ambiente é ativo econômico central.

Conclusão: COP 30 como divisor de águas do saneamento

Belém expõe a verdade incômoda e necessária: o saneamento brasileiro ainda está aquém do que a sociedade exige.
A COP 30 só fará sentido histórico se deixar ligações ativas, ETEs estáveis, DBO removida, emissões reduzidas, balneabilidade melhorada e extravasamentos sob controle. Em outras palavras, se aquilo que importa para o morador — e que se mede no laboratório, na fatura e no rio — for entregue. O momento é único: ou o saneamento assume o protagonismo que a crise climática lhe confere, ou o país trocará mais uma vez legado por evento.

Fontes (com links clicáveis)