O novo marco do abastecimento de água no Ceará
O Brasil está prestes a dar um salto tecnológico no abastecimento de água com o início da construção, em 2025, da maior usina de dessalinização do país, localizada em Fortaleza (CE). O empreendimento, conduzido pelo consórcio Águas de Fortaleza, liderado pela empresa Marquise Infraestrutura e com apoio da Cagece, será um divisor de águas para a segurança hídrica do Nordeste.
Inicialmente prevista para começar em 2024, a obra sofreu ajustes devido a um impasse técnico: o projeto original previa a instalação das adutoras em uma área com 17 cabos submarinos de telecomunicação. Para eliminar o risco de interferência nesses cabos, o traçado foi redesenhado, deslocando o local da usina 560 metros ao longo da Praia do Futuro e ajustando o percurso das tubulações, que agora evitarão qualquer cruzamento com infraestruturas de dados.
Com o projeto revisado, o início das obras foi confirmado para o primeiro semestre de 2025, e a conclusão está prevista para o primeiro semestre de 2027.
A capacidade projetada é impressionante: 1 m³ de água dessalinizada por segundo, equivalente a 86,4 milhões de litros por dia — volume suficiente para atender aproximadamente 720 mil pessoas na capital cearense. Esse reforço será essencial para mitigar os efeitos da variabilidade climática e garantir estabilidade no sistema de abastecimento de água urbano.
Engenharia e tecnologia aplicadas ao projeto
1. Captação e pré-tratamento
A captação será realizada diretamente do mar, em área de águas profundas e alta renovação, reduzindo riscos de contaminação e melhorando a eficiência das etapas seguintes. O pré-tratamento incluirá gradeamento, filtragem multicamada, coagulação e floculação e ultrafiltração por membranas, para remover sólidos em suspensão, areia e organismos marinhos antes da dessalinização principal.
2. Processo de dessalinização por osmose reversa
A usina utilizará tecnologia de osmose reversa (RO), a mais moderna e consolidada do mundo. Esse processo força a água do mar a passar por membranas semipermeáveis sob alta pressão — em torno de 65 bar, vencendo a pressão osmótica natural e separando a água doce dos sais dissolvidos. As membranas terão camadas de polímeros compostos (TFC – Thin Film Composite) com vida útil média de 7 a 10 anos, e o sistema contará com limpeza química automática (CIP – Clean-in-Place) para manter o desempenho.
3. Pós-tratamento e integração à rede
A água dessalinizada passará por remineralização, com adição de cálcio e magnésio, e correção de pH entre 7 e 8, para adequação às normas de potabilidade e compatibilidade com as adutoras da Cagece. O volume produzido será injetado diretamente no sistema de abastecimento de água de Fortaleza, integrando-se a reservatórios e estações elevatórias já existentes.
4. Gestão da salmoura e impactos ambientais
A salmoura residual, rica em sais concentrados, será diluída em tubulações de difusão a aproximadamente 1 km da costa, com taxa de dispersão calculada para não ultrapassar o limite de 5% de salinidade acima da média local. Estudos ambientais indicam impacto mínimo sobre a fauna marinha quando o descarte é realizado em correntes com forte renovação. A operação atenderá às exigências da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) e aos padrões da Resolução Conama 430/2011.
5. Eficiência energética e custos
A energia representa o maior custo de operação de uma usina de dessalinização. No projeto de Fortaleza, estão sendo estudadas fontes renováveis, como energia solar e eólica, para reduzir o consumo específico — estimado entre 3,5 e 4,0 kWh/m³ — e mitigar as emissões de carbono. Com esses parâmetros, o custo estimado do metro cúbico produzido deve variar entre US$ 0,80 e US$ 1,10, valor competitivo para um sistema costeiro de grande porte de abastecimento de água.
Benefícios diretos para Fortaleza e o Ceará
O projeto ampliará em cerca de 15% a capacidade total de abastecimento de água da região metropolitana, garantindo estabilidade mesmo em períodos de estiagem severa. Atualmente, Fortaleza depende fortemente de reservatórios interligados por longos canais e adutoras, sujeitos a secas prolongadas no interior do estado. A dessalinização oferecerá uma fonte perene, independente da pluviometria, e reduzirá a pressão sobre mananciais como o Açude Castanhão e o Eixão das Águas.
Além disso, o projeto trará benefícios socioeconômicos relevantes: geração de cerca de 2 mil empregos diretos e 3 mil indiretos durante a fase de construção, além de fomentar inovação tecnológica e capacitação de operadores para o setor de saneamento.
Comparativos e casos de referência
No Brasil
- ArcelorMittal Tubarão (ES): capacidade de 500 m³/h, projeto industrial que serve de referência tecnológica no país.
- João Câmara (RN): usina entregue pela PowerChina em 2023, voltada ao reforço do abastecimento de água no semiárido potiguar.
- Ilhabela (SP): projeto da Sabesp com 30 L/s (2.592 m³/dia) de capacidade, integração com energia solar e foco em turismo sustentável.
- Fernando de Noronha (PE): usina de RO com 28 m³/h, essencial para o abastecimento de água da ilha, reduzindo dependência de transporte por navio.
No mundo
- Ras Al-Khair (Arábia Saudita): capacidade de 1 milhão m³/dia, combinando tecnologia térmica e RO, sendo referência global em megainfraestrutura hídrica.
- Carlsbad (Califórnia, EUA): produz 204 mil m³/dia, abastecendo 10% da população de San Diego, com custo médio de US$ 0,85/m³.
- Antofagasta (Chile): planta de 34,5 mil m³/dia, destinada à mineração e ao abastecimento de água de comunidades costeiras.
- Ashkelon (Israel): símbolo global de eficiência, com produção de 330 mil m³/dia e consumo energético de apenas 3,6 kWh/m³, integrando o sistema nacional israelense.
Perspectivas e desafios futuros
O principal desafio para o Brasil será equilibrar custos energéticos e sustentabilidade ambiental. Para isso, o Ceará estuda a integração da usina com parques eólicos e solares no litoral, criando um modelo híbrido de geração e dessalinização. A replicação dessa experiência poderá inspirar outras cidades nordestinas — como Natal, Maceió e Aracaju — a incluir plantas de dessalinização em seus planos diretores de abastecimento de água.
Além disso, o sucesso do projeto depende de forte monitoramento operacional, automação via SCADA, e políticas públicas de tarifação justa, garantindo que o custo adicional não onere desproporcionalmente o consumidor final.
Conclusão
A usina de Fortaleza representa um marco histórico para o abastecimento de água no Brasil. Ao combinar engenharia de ponta, segurança ambiental e integração energética, o projeto coloca o país na vanguarda da dessalinização na América Latina. Quando concluída, fornecerá 86,4 milhões de litros diários de água potável, assegurando estabilidade hídrica para mais de 720 mil habitantes e criando um novo paradigma para o saneamento em regiões com escassez hídrica. O futuro do abastecimento de água brasileiro passa, inevitavelmente, pelo mar.
Fontes principais
- BNAmericas – Brazil’s largest desalination plant to begin construction in October
- H2O Global News – IDE Water Technologies to design Fortaleza SWRO Plant
- ResearchGate – Reverse Osmosis Desalination Plants in Brazil: Cost Analysis
- Revista Pesquisa Fapesp – Removendo sal da água com nanotecnologia
- Click Petróleo e Gás – ArcelorMittal Tubarão Dessalinização Project
- Reuters – Antofagasta Los Pelambres Desalination Plant
- Wikipedia – Ras Al-Khair and Ashkelon Desalination Plants
- Cagece – Plano de Segurança Hídrica do Ceará



